A série Retrospectiva Brasil é uma análise anual da Transparência Internacional – Brasil sobre os principais acontecimentos relacionados ao combate à corrupção e promoção da transparência e integridade no país.
Introdução
Em 2022, encerrou-se o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro e, com ele, um processo de desmanche acelerado dos marcos legais e institucionais anticorrupção que o país havia levado décadas para construir. Junto ao retrocesso na capacidade de enfrentamento da corrupção, o Brasil sofreu degeneração sem precedentes de seu regime democrático, culminando nos ataques de 8 de janeiro à Praça dos Três Poderes, que chocaram o mundo. Os dois processos, de desmonte do arcabouço anticorrupção e da degradação da governança democrática, estão estreitamente relacionados.
Jair Bolsonaro se elegeu em 2018 sequestrando o discurso anticorrupção. Apesar de sua trajetória política de três décadas, em que jamais apresentou projeto de lei para o enfrentamento da corrupção, participou de investigação parlamentar ou denunciou qualquer ato de corrupção — mesmo filiado às agremiações mais fisiológicas e corruptas do sistema partidário brasileiro —, ele conseguiu se vender ao eleitorado como um “outsider” comprometido com a luta contra a corrupção.
Porém, antes mesmo de tomar posse, o escândalo da “rachadinha” revelou ao Brasil o verdadeiro histórico de Bolsonaro e sua família com relação à corrupção. Montanhas de evidências mostraram uma família dedicada, por décadas, a enriquecer com o desvio de verbas parlamentares, em esquemas de baixa sofisticação, nos gabinetes de Jair Bolsonaro e seus filhos. Como agravante, evidências de que o dinheiro ilícito era lavado através de operadores associados à criminalidade organizada violenta do Rio de Janeiro.
Este evento, às vésperas da inauguração do governo Bolsonaro, é fundamental para a compreensão da dinâmica de destruição institucional que se produziu nos quatro anos seguintes. Acuado desde a posse pela corrupção fartamente comprovada da família, a prioridade do Presidente passou a ser, desde o primeiro dia de seu mandato, garantir sua blindagem, o que fez através da neutralização do aparato institucional e legal que o ameaçava. Muito mais do que frear processos específicos, ele neutralizou o sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira, desmontando os três pilares que o sustentam: jurídico, político e social. Com isto, sua blindagem foi muito além da delinquência passada. Ele garantiu impunidade para cometer novos e muito mais graves crimes.
O desmonte do pilar de responsabilização jurídica ocorreu pela ingerência sistemática e perda de independência do ecossistema de controle: PGR, PF, CGU, AGU, Abin e Receita Federal. A peça central do desmonte e com consequências mais graves e duradouras foi a nomeação do Procurador-Geral da República Augusto Aras, que não apenas desarticulou o enfrentamento à macrocorrupção, mas foi também responsável por uma retração histórica nas funções de controle constitucional dos atos do governo.
As consequências da omissão da PGR vão muito além da corrupção, ao assistir inerte à gestão criminosa da pandemia da COVID-19, que resultou na maior tragédia humanitária da história brasileira; o desmonte doloso da governança ambiental, que fez explodir as taxas de desmatamento e violações de direitos humanos entre povos indígenas e comunidades tradicionais; além dos ataques permanentes às instituições democráticas, culminando na intentona bolsonarista de 8 de janeiro.
Se os ataques dos fanáticos golpistas destruíram fisicamente as sedes dos Três Poderes, a omissão da PGR contribuiu para sua destruição institucional. Talvez a implicação mais deletéria tenha recaído sobre o Poder Judiciário. Diante das ameaças gravíssimas e ataques efetivos ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior Eleitoral, aos seus membros e ao próprio regime democrático, o vácuo constitucional da PGR capturada pelo bolsonarismo foi preenchido pela exacerbação dos papéis das duas Cortes. Sem poder contar com o titular da ação penal ou confiar no PGR Augusto Aras, ministros passaram a agir de ofício e homologar coletivamente heterodoxias que jamais referendariam, se não concebessem uma situação de risco extremo. Mas se a subversão do regime acusatório serviu como uma traqueostomia no resgate de um sistema sufocado, a violação continuada de garantias processuais e direitos individuais trazem consequências nefastas para o Estado de direito e minam, progressivamente, a reserva de autoridade da Justiça.
O segundo pilar, de responsabilização política, foi desmontado com a compra do bloco parlamentar conhecido por “Centrão”, através do esquema do “Orçamento Secreto”, em conluio com o multicondenado presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Sob um verniz de legalidade e um teatro de institucionalidade, o Orçamento Secreto representou o maior esquema de apropriação orçamentária para fins escusos que se tem registro no país, com efeitos funestos em vários níveis.
O esquema perverteu a formulação de políticas públicas em áreas essenciais como saúde, educação e assistência social, retirando recursos de programas elaborados por técnicos, orientados por prioridades e visão de longo prazo, para favorecer projetos paroquiais e insustentáveis que atendiam interesses eleitoreiros. Além disso, ao jorrar bilhões para municípios sem capacidade institucional de controle, pulverizou-se ainda mais a corrupção no país, potencializando fraudes e desvios em nível local. O efeito mais grave, no entanto, foi a distorção da representação democrática. O acesso desigual aos bilhões do Orçamento Secreto favoreceu enormemente, nas eleições de outubro, os candidatos do Centrão e seus aliados, não apenas no Congresso Nacional, mas em todas as assembleias estaduais. A fraude orçamentária, portanto, levou à ampliação da banda podre da política brasileira e do feudalismo eleitoral, ao mesmo tempo em que impôs obstáculos ainda maiores a um processo de renovação inclusiva e democratizante do Poder Legislativo.
É importante compreender que este esquema tão danoso ao país teve em sua gênese não o objetivo de se garantir “governabilidade” — até porque se tratava de um governo desprovido de agenda e projetos —, mas o objetivo primordial foi a blindagem política. Em troca do comando do Orçamento Secreto, Arthur Lira manteve inerte em sua gaveta mais de 140 pedidos de impeachment, garantindo a impunidade da corrupção e dos crimes de responsabilidade praticados em série pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Finalmente, o terceiro pilar do sistema de freios e contrapesos da democracia solapado por Bolsonaro foi o do controle social. Isto ocorreu através da redução drástica da transparência e do acesso à informação pública, por meio do apagão de dados governamentais e sigilos abusivos, extinção dos espaços institucionalizados de participação social, disseminação sistemática de fake news e discurso de ódio através de canais oficiais e manifestações de autoridades públicas, articulação e financiamento oculto de milícias digitais, alocação de verbas de publicidade oficial para veículos de desinformação e mídia oficialista, ataques permanentes, inclusive violentos, a ativistas, acadêmicos, artistas e jornalistas — principalmente jornalistas mulheres —, estruturação de aparato clandestino de espionagem com vigilância digital e conversão da Polícia Rodoviária Federal em verdadeira guarda pretoriana.
Mas a sociedade brasileira não se rendeu à deterioração do espaço cívico e tampouco as instituições se vergaram completamente ao autoritarismo. A ameaça bolsonarista provocou mobilização de resistência apenas comparável, na história recente, aos movimentos pelo fim da ditadura militar e por eleições diretas. Durante todo o ano, agentes públicos e privados atuaram de maneira permanente na defesa do processo eleitoral. Com os ataques à credibilidade das urnas eletrônicas e ameaças de não reconhecimento dos resultados se intensificando, à medida em que pesquisas apontavam para a derrota do então presidente, os esforços de resistência também redobraram, unindo a sociedade civil organizada, empresariado e autoridades públicas comprometidas com a democracia.
Além das ações no país, houve forte mobilização da comunidade internacional em defesa da democracia brasileira. Manifestações de governos estrangeiros se multiplicaram expressando confiança no sistema eleitoral do país e resoluções inéditas no Congresso dos Estados Unidos e no Parlamento Europeu deixaram claro o repúdio absoluto às ameaças de ruptura democrática.
Pode-se afirmar, com elevado grau de confiança, de que estas ações e manifestações, por todos os lados, alcançaram, ao menos no curto prazo, o objetivo de dissuadir planos golpistas, cuja existência foi posteriormente comprovada materialmente.
Jair Bolsonaro e sua família lograram se esquivar da responsabilização por seus crimes. A neutralização do sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira alcançou o objetivo de impunidade. Apesar disso, a democracia resistiu e, através dela, o país renegou um segundo mandato presidencial a Jair Bolsonaro.
O novo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, tem credenciais democráticas incomparáveis às de seu antecessor. Mas sua eleição também traz grandes incertezas sobre a pauta anticorrupção no Brasil. Assim como todos os demais partidos brasileiros, até hoje o Partido dos Trabalhadores (PT) vem se negando a reconhecer e, principalmente, promover correções de práticas corruptas disseminadas e profundamente arraigadas no sistema político brasileiro em conluio com o poder econômico.
Os governos do PT, como todos os governos antecessores, estiveram envolvidos em imensos esquemas de corrupção, com graves consequências econômicas, sociais e ambientais, além de profundos danos à democracia. Mas foi durante as administrações de Lula e Dilma Rousseff que o Brasil mais avançou no fortalecimento de leis e instituições de enfrentamento à corrupção, com destaque para a defesa e ampliação do espaço cívico, com políticas públicas de fomento à transparência e à participação social.
Como sempre ocorre, as reformas progressistas dos governos petistas, de ampliação da transparência e da independência dos órgãos de controle, foram resultado de tensões e embates internos. De um lado, um corpo de técnicos – entre eles, um grupo importante de jovens advogados constitucionalistas, especialistas em direito público e direitos humanos – que foram os arquitetos por trás de leis fundamentais como a Lei de Acesso à Informação e a Lei Anticorrupção, do fortalecimento de órgãos como a Polícia Federal e a CGU e de nomeações para os tribunais superiores e, principalmente, para a Procuradoria-Geral da República, que resultaram na mudança histórica de patamar de sua independência e accountability. Estes avanços não ocorreram sem resistência de figuras poderosas de dentro do Governo e lideranças partidárias tradicionais, mas a balança de poder, naquele momento, pendia desfavoravelmente a este grupo, abalado pelas condenações do mega esquema de corrupção do “Mensalão”.
Qualquer previsão sobre quais rumos as agendas de transparência e anticorrupção tomarão neste terceiro governo Lula deve, necessariamente, levar em consideração a mesma lógica de embate e as peças atualmente no tabuleiro.
É fundamental para o Brasil que o novo governo não ceda à tentação — e às pressões — para consolidar como novo padrão as práticas bolsonaristas de sujeição das instituições de controle aos interesses políticos, da opacidade quanto às informações públicas e dos pactos de impunidade com o Centrão.
A sociedade e as instituições brasileiras devem priorizar o resgate democrático da luta contra a corrupção e, com isso, seu significado fundamental: uma luta por direitos.