Luti Guedes, de 30 anos, mora próximo à Ilha do Marajó (PA), vasto território cercado de belezas que formam a maior ilha fluviomarinha do mundo, entre um rio e o mar. A riqueza natural se choca com uma contradição: o arquipélago tem três dos dez municípios com os piores Índices de Desenvolvimento Humano do Brasil (IDH): Melgaço, Chaves e Bagre.
A população do Marajó, majoritariamente formada por ribeirinhos e comunidades tradicionais, tem sido frequentemente marginalizada das decisões que a afetam e dos espaços formais de poder que decidem sobre suas condições de vida e garantem (ou não) o acesso a direitos fundamentais. Isso deixa as comunidades vulneráveis a riscos como insegurança alimentar e de subsistência, explica Luti.
Ediane Lima, 29, nascida no Marajó, conta que ela e sua família sempre enfrentaram dificuldades por falta de acesso a políticas públicas. “Eu morava em uma comunidade ribeirinha e, para estudar, tive que sair da minha comunidade e me deslocar para outro município, porque não havia acesso à educação de qualidade onde nasci.”
Por lacunas como essa que, em 2020, Luti fundou o Observatório do Marajó, uma organização de base que atua no fortalecimento do espaço cívico da Ilha do Marajó e seus 16 municípios e da qual Ediane é, hoje, gestora de projetos. “É importante termos uma organização que olhe para essas questões de dentro do território, que tenha esse compromisso, e o melhor: que seja formada por pessoas das comunidades, que conhecem suas realidades, dificuldades e lutas”, comemora ela.
Naquele ano, quando a pandemia da Covid-19 chegou ao Brasil, Luti percebeu que as autoridades locais não estavam se preparando com antecedência para a disseminação da doença, que demorou a se espalhar por aquela região tão isolada.
“Não havia estruturas para ajudar as comunidades nas áreas mais rurais nem qualquer estratégia sobre como os recursos seriam usados”, diz Luti. “Os políticos locais só queriam vincular sua própria imagem à resposta à crise.” Em paralelo, em São Paulo, a Transparência Internacional – Brasil tinha preocupações semelhantes sobre a resposta do governo federal à Covid-19 no nível local e as debilidades de transparência e governança pública demonstradas pelas cidades no país.
Municípios no Brasil têm níveis muito diferentes de transparência e abertura. No início da pandemia, muitos não publicavam nem mesmo as informações mais básicas sobre suas atividades e o uso de recursos públicos em seus sites. A pandemia, no entanto, colocou as prefeituras na linha de frente na luta contra a Covid-19 e escancarou desvios de recursos que deveriam estar sendo usados para enfrentar a crise sanitária.
Como resposta a esse problema, passado o auge da pandemia, a Transparência Internacional – Brasil desenvolveu o Índice de Transparência e Governança Pública (ITGP), uma avaliação de mais de 90 indicadores para promover transparência, boa governança e participação social como mecanismos de integridade e efetividade municipal, por meio de uma avaliação comparativa no nível municipal. A metodologia procura mensurar os esforços dos entes avaliados para tornar as informações mais acessíveis à população e a atitude proativa de governos para não apenas apresentar a informação mas também oferecer canais de comunicação para que a população possa participar e debater políticas públicas, fazer denúncias e solicitar outras informações que não estão, a priori, disponibilizadas.
O Índice de Transparência e Governança Pública – Executivo Municipal foi lançado em 2022 pela primeira vez, em parceria com oito organizações da sociedade civil em quatro regiões do país. A Transparência Internacional – Brasil realizou um processo seletivo, firmou acordos de cooperação técnica, repassou recursos através de mini bolsas, capacitou pessoal e forneceu metodologia específica e apoio técnico para essas organizações, que avaliaram 187 municípios em sete estados do país – Bahia, Espírito Santo, Pará, Paraná, Piauí, Rio Grande do Sul e São Paulo.
O Observatório do Marajó foi uma dessas organizações. A entidade avaliou todos os municípios do arquipélago e lançou o Ranking de Transparência e Governança Pública do Marajó, que evidenciou como a região ainda carece de iniciativas de transparência e integridade nos municípios. Com a pesquisa, foi constatado que nenhuma prefeitura da região possui Conselho de Transparência ou de Combate à Corrupção, nenhuma delas também têm plataforma para acompanhamento de obras públicas que informe todos os critérios mapeados na pesquisa, assim como não possuem regulamentação de conflito de interesse.
Indo do Norte para o Nordeste, a Força Tarefa Popular, grupo atuante há mais de 20 anos no Piauí, avaliou dez prefeituras piauienses, incluindo a capital Teresina, por meio do Índice de Transparência e Governança Pública. “A situação de baixa transparência nos executivos municipais constatada na avaliação do ITGP 2022 é grave e exige reflexões urgentes, visto ser uma afronta ao Estado Democrático de Direito e inviabilizar o controle externo”, alerta Teresa Cristina Coelho Matos, voluntária há mais de uma década na Força Tarefa Popular.
A entidade uniu esforços com estudantes da Universidade Federal do Piauí e do Instituto Federal do Piauí para levar as recomendações de boas práticas para prefeituras e para realizarem as avaliações. “O cenário indica que é possível chegarmos à excelência. O resultado da avaliação mostra a necessidade de que sociedade, órgãos de controle e municípios procurem de forma conjunta e particularmente, dentro de suas atribuições, mecanismos para mudar a realidade”, comenta Teresa Cristina Matos, voluntária há mais de uma década na Força Tarefa Popular.
Além do desafio com a implementação de agendas de integridade, dados abertos e políticas de combate à corrupção nos municípios, ela ressalta que um desafio extra é engajar os cidadãos.
“É preciso construir caminhos e formas para motivar a população dos municípios piauienses a acessar as informações disponibilizadas nos portais, a exercer o direito e o dever em fiscalizar a aplicação dos recursos e exigir a devida transparência nas informações”
Teresa Cristina Matos, voluntária na Força Tarefa Popular.
Com esse intuito, a Força Tarefa Popular firmou parceria com o Tribunal de Contas do Estado do Piauí (TCE-PI) para realização de cursos de capacitação para ativistas do controle social democrático, buscando empoderar cidadãos com conhecimento e informações para que possam contribuir na efetividade de políticas públicas.
Ainda no Nordeste, na Bahia, o Instituto Nossa Ilhéus (INI) avaliou 26 prefeituras do litoral Sul da Bahia, por meio do ITGP. “O bom êxito na realização do projeto ITGP só foi possível devido ao aprofundamento de um diálogo colaborativo entre o INI, os avaliadores, as controladorias internas dos municípios e os responsáveis pela gestão técnica dos sites oficiais”, comenta Socorro Mendonça, fundadora do instituto.
Essa cooperação com órgãos de governo é base para a metodologia do Índice de Transparência e Governança Pública, de maneira a criar espaços de diálogo e aprendizado mútuos para implementar mudanças. Por isso, após uma avaliação preliminar realizada pelas organizações parceiras da Transparência Internacional – Brasil, as prefeituras recebem suas respectivas notas para que tenham a oportunidade de fazer ajustes em seus portais e sinalizar possíveis erros, com as devidas justificativas.
“Com isso, boa parte dessas prefeituras teve melhora na nota entre a avaliação preliminar e a divulgação do ranking. Esse diálogo nos permite avançar ainda mais em novas ações que visem o aperfeiçoamento das agendas de transparência, integridade, governança pública e participação cidadã nos municípios da região”
Socorro Mendonça, fundadora do Instituto Nossa Ilhéus.
Com resultados concretos já obtidos no primeiro ano do Índice de Transparência e Governança Pública Municipal, e a necessidade e oportunidade de avanços em mecanismos de transparência, participação social e de combate à corrupção, a Transparência Internacional – Brasil e as organizações parceiras se preparam para realizar a segunda avaliação em 2023 que permitirá saber o quanto os municípios avançaram em relação à primeira rodada.
“Enquanto os poderes constituídos atuarem sem que haja transparência, sem deixar a população entender de forma clara e acompanhar o que está acontecendo nas cidades e como está sendo aplicado o recurso público, nós não teremos melhor qualidade de vida”, observa Mendonça.
De volta ao Pará, 12 dos 17 municípios avaliados pelo Observatório do Marajó se comprometeram com as conclusões e recomendações da avaliação do Índice de Transparência e Governança Pública em 2022 para um governo local mais transparente.
Em todo o Brasil, 49% das prefeituras municipais avaliadas responderam às avaliações de transparência realizadas e declararam já terem realizado ou estarem realizando melhorias, como publicar as agendas dos funcionários on-line, criar ferramentas digitais de agendamento para melhorar o acesso público aos serviços de saúde e criar mecanismos seguro para denúncias de corrupção.
Isso, por sua vez, abriu as portas para as organizações locais da sociedade civil. O Observatório do Marajó agora tem uma plataforma maior para um projeto sobre desmatamento e corrupção, que é vital não apenas para o Pará e o Brasil mas para todo o planeta: somente em 2021, o estado do Pará perdeu 692 mil hectares de floresta natural, equivalente a cerca de 1.000 campos de futebol.
O mais importante, diz Luti, do Observatório do Marajó, é que o projeto colocou o poder nas mãos de pessoas que normalmente não conseguiam influenciar as decisões que as afetavam.
“O que deveria ser comum e não é, por isso mesmo é importante e deve ser valorizado, foi poder ver Ediane, uma mulher negra de uma comunidade ribeirinha tradicional, liderando um processo de controle social com os municípios de sua região, que ouviram suas recomendações sobre como melhorar a transparência.”
Luti Guedes, Observatório do Marajó
A segunda edição do Índice de Transparência e Governança Pública – Executivo Municipal está prevista para setembro de 2023.