A Lava Jato e a Procuradoria-Geral da República (PGR) erraram ao firmar, nos acordos com a Odebrecht, cláusulas que resultaram, na prática, em proteção internacional à empresa e seus executivos. Seria juridicamente compreensível evitar a duplicidade de punições no exterior (princípio do non bis in idem), caso houvesse efetiva responsabilização no Brasil pelos crimes de suborno transnacional. Mas isso não ocorreu — e tudo indica que não ocorrerá. O resultado é que o Brasil, além de não punir o maior esquema de suborno transnacional da história, ainda dificulta que outros países o façam.
Essa proteção internacional não foi oferecida apenas pelo Ministério Público Federal. O acordo de leniência firmado pela Controladoria-Geral da União (GCU) também estabeleceu prazos amplos (dois anos, renováveis por mais dois) para que a Odebrecht firmasse acordos com os países nos quais confessou ter subornado autoridades — mais de uma dezena. O prazo (já prorrogado) terminou no ano passado sem qualquer transparência quanto aos resultados: não se sabe se os acordos foram firmados, se haverá punição no Brasil ou não. O processo segue em sigilo, sob responsabilidade de um ministério hoje chefiado por quem, até o ano passado, atuava como advogado da própria empresa beneficiada.
Quando o Peru aceitou o acordo imposto pelo Brasil, que restringe o uso das provas a nacionais peruanos e proíbe sua aplicação contra a Odebrecht e seus executivos, assumiu a obrigação de respeitar seus termos, ainda que eles favoreçam a impunidade. Há indícios relevantes de que autoridades peruanas violaram o acordo, utilizando as provas além do escopo permitido.
Ainda assim, os peruanos têm razão em não se submeter à decisão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou todas as provas do acordo de leniência no Brasil. O mesmo fizeram os Estados Unidos, que mantiveram condenações baseadas nas provas. A razão é simples: decisões de um juiz brasileiro não têm efeito vinculante em outras jurisdições.
Se, como foi noticiado, autoridades brasileiras passaram a condicionar a continuidade da cooperação internacional ao reconhecimento da decisão do ministro Toffoli pelo Judiciário peruano, são essas mesmas autoridades brasileiras que violam normas elementares do direito internacional e descumprem obrigações multilaterais assumidas pelo Brasil no combate à corrupção.
A decisão do ministro Toffoli foi objeto de crítica expressa por parte da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), além de três recursos contra a decisão – sequer analisados até hoje. Embora o sistema de Justiça brasileiro possa tolerar que um único juiz anule, com base em fundamentos extremamente frágeis, todas as provas do maior esquema de corrupção transnacional da história — incluindo provas que mencionam o próprio juiz —, o restante do mundo não está obrigado a aceitar ou silenciar diante do fato de que o Brasil, depois de exportar corrupção, passou a tentar exportar impunidade.
Uma das justificativas altamente questionáveis para a anulação foi a suposta quebra de cadeia de custódia dos dois HDs entregues pela Suíça, que continham os sistemas de contabilidade paralela e comunicação secreta da Odebrecht (Drousys e My Web Day). As decisões do então ministro do STF Ricardo Lewandowski, em 2022, e de Toffoli, em 2023, basearam-se, entre outros pontos, em trechos de diálogos hackeados — especificamente em uma conversa informal de um procurador sobre o transporte dos HDs em “sacolas de supermercado”. Não houve perícia técnica comprovando qualquer adulteração ou violação dos dados. Provas fornecidas pela empresa, pelas autoridades suíças e corroboradas por centenas de depoimentos foram consideradas imprestáveis com base em elementos tão frágeis quanto uma piada em um grupo de mensagens, gerando a anulação em massa de processos — inclusive de condenações de réus confessos – de macro corrupção.
Mesmo que se admitisse eventual descuido no transporte dos HDs, nada impediria o Brasil de requerer novamente à Suíça a remessa das provas ou a certificação de integridade dos arquivos, por meio da verificação dos chamados “hashes” digitais. Foi o que o Peru fez: diante da mesma alegação, as autoridades locais optaram pelo caminho lógico — pedir autenticação ao país de origem do material, que realizou a apreensão direta dos servidores.
Outras alegações utilizadas para justificar a anulação, como suposta “cooperação informal” entre membros do MPF e autoridades estrangeiras, também se mostraram infundadas. Uma sindicância ordenada pelo então ministro Lewandowski apurou essas alegações — incluindo a absurda acusação de que a Transparência Internacional teria recebido repasses ocultos da Odebrecht — e concluiu pela inexistência de qualquer ilegalidade. No entanto, o então ministro não apenas ignorou o resultado da sindicância, mas decretou sigilo sobre seu conteúdo. Mesmo após reiterados pedidos formais de acesso, a Transparência Internacional – Brasil não tem acesso à investigação que a inocentou. Alegações infundadas que alimentam campanhas difamatórias contra a organização são públicas; mas a prova de sua falsidade segue oculta — um paradoxo jurídico e institucional inaceitável.
Por fim, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) chegou a afirmar que não existia o pedido formal do MPF à Suíça para cooperação no caso. Dias após a decisão de Toffoli, voltou atrás e reconheceu que o pedido existia. Ainda assim, a correção não teve qualquer efeito prático: passados mais de 20 meses, o STF permanece inerte diante dos recursos interpostos contra uma das decisões mais graves de sua história institucional.
Há mais de cinco anos, a Transparência Internacional é alvo de incessantes campanhas difamatórias no Brasil, fomentadas por fake news difundidas por autoridades de alto escalão e empresários corruptos. Há três anos, essas campanhas evoluíram para grave assédio judicial. Nada disso impedirá que a Transparência Internacional continue expondo a corrupção e a impunidade, principalmente de poderosos.