Por *Guilherme France e Maria Dominguez
Divulgado nesta semana, o Índice de Integridade no setor de Defesa (Government Defence Integrity Index, GDI) aponta que o Brasil apresenta risco moderado de corrupção nos seus setores de defesa e segurança. Com uma pontuação de 59 pontos, em uma escala que vai de 0 a 100, os maiores riscos enfrentados pelo país encontram-se nas áreas de operações militares e de licitações.
Se, de um lado, a avaliação conduzida pela Transparência Internacional aponta que o Brasil encontra-se em situação semelhante a um amplo conjunto de países desenvolvidos e em desenvolvimento que também apresentam riscos moderados de corrupção, de outro, evidencia áreas de persistentes deficiências legais e institucionais no Estado brasileiro. Uma avaliação de notícias e outras pesquisas recentes também deixa claro que os retrocessos impostos pelo atual governo na luta contra a corrupção também ameaçam as salvaguardas fundamentais contra este tipo de desvio no setor militar, especialmente a transparência e o acesso à informação.
De modo geral, os resultados encontrados pela Transparência Internacional pintam um quadro preocupante para o setor de defesa no plano global. Quase dois terços dos 86 países analisados apresentam alto risco de corrupção em seus setores de defesa e segurança. Em um contexto de aumento dos gastos militares, que já alcançam dois trilhões de dólares anuais, crescem também as oportunidades e os riscos de corrupção. Além do desperdício e dos desvios de recursos, a corrupção no setor militar tem o potencial de exacerbar conflitos, gerando perdas incalculáveis de vidas e perpetuando ciclos de destruição e guerra.
Metodologia do GDI2020
Reconhecendo que as instituições de defesa e segurança de Estado muitas vezes apresentam baixos níveis de transparência, são impermeáveis ao controle social e apresentam altos riscos de corrupção, o GDI avalia cinco tipos de riscos de corrupção nessas instituições: riscos políticos, financeiros, de pessoal, operacionais e das licitações. Esses cinco tipos de riscos de corrupção são avaliados com base em 77 indicadores, compostos por mais de 200 perguntas.
De acordo com uma metodologia pré-definida, essas perguntas são respondidas por um(a) especialista que apresenta evidências (leis e atos administrativos, documentos públicos, notícias, pesquisas) para embasar suas avaliações. As pontuações são revistas por outras(os) especialistas independentes e pelo capítulo nacional da Transparência Internacional. Os governos nacionais também foram convidados a participar do processo, oferecendo comentários e sugestões em relação a cada uma das respostas.
Os resultados de cada país são apresentados em seis faixas de pontuação, que variam de A, o melhor resultado possível, a F, o pior. Apesar do GDI já ter realizado uma avaliação anterior em 2015, os resultados não são comparáveis à versão de 2020, devido a mudanças metodológicas. Em 2015, o Brasil ficou com o resultado E, apresentando, portanto, pouca capacidade institucional dos setores de segurança e defesa para reagir aos riscos de corrupção. Na avaliação de 2020, o setor de defesa brasileiro ficou na faixa de pontuação C, indicando uma capacidade institucional moderada para combater a corrupção no setor militar.
Principais riscos de corrupção enfrentados pelo setor de Defesa no Brasil
A avaliação do GDI indica que os maiores riscos políticos de corrupção no setor de defesa brasileiro se devem à falta de regulamentação do lobby no Brasil, que seria composto por um sistema para registro de lobistas, por um registro de reuniões e encontros de autoridades do setor de defesa com grupos de interesse, e por um órgão de fiscalização que garanta a aplicação da legislação sobre lobby. Trata-se de uma deficiência histórica do arcabouço legal de combate à corrupção no país.
O alinhamento ideológico do atual governo com a defesa da liberação do comércio, posse e porte de armas o aproxima de empresas do setor de segurança, especialmente fabricantes de armas leves e munições. A defesa dos interesses destas empresas perante agentes públicos, no entanto, deve ser realizada de modo republicano, em linha com os princípios da impessoalidade, publicidade e moralidade. Deve, também, ser acompanhada de processos que garantam a igualdade de acesso aos tomadores de decisão a grupos com posição política contrária à liberação das armas. É o que recomendam as melhores práticas internacionais, objetivando assegurar que um conjunto amplo de ideias e evidências foi considerado na tomada de decisão.
Um levantamento parcial dos registros de entrada em ministérios mostrou que representantes de empresas do setor de defesa e segurança se reuniram mais de 70 vezes com agentes públicos do governo federal entre janeiro de 2019 e abril de 2020. Muitas destas reuniões antecederam a tomada de decisões favoráveis para o setor. A impossibilidade de rastrear a pegada legislativa destas decisões, ou seja, os inputs que contribuíram para que fossem tomadas prejudica a compreensão sobre os interesses que foram considerados e a avaliação sobre os seus possíveis impactos que se mostram graves com o aumento recorde do número de armas de fogo em circulação.
É fundamental que o público saiba mais sobre estas interações, sobre os assuntos tratados e os interesses defendidos e mesmo sobre os documentos compartilhados entre grupos de interesse e autoridades públicas. Desde 2019, a CGU tem discutido propostas para regulamentar o lobby no âmbito do governo federal, sem que estes esforços tenham produzido frutos concretos. Mesmo a transparência das agendas das autoridades públicas, uma exigência imposta pela Lei sobre Conflitos de Interesse (Lei nº 12.812, de 2013), tem sido repetidamente obstaculizada por altas autoridades do governo federal que deixam de registrar reuniões ou pretendem impor sigilo sobre registros de reuniões e de entrada em prédios públicos.
O maior risco financeiro apontado pelo GDI, por sua vez, foi a ausência de informações públicas sobre o orçamento investido na aquisição de itens secretos relacionados à segurança nacional e à inteligência militar.
Chamou atenção, por exemplo, a licitação realizada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública para adquirir o sistema de espionagem Pegasus. Além de envolver ilegalidades no processo licitatório, que foi recentemente suspendido pelo Tribunal de Contas da União, outros riscos de vigilância, perseguição e ameaças a jornalistas, ativistas e opositores ao governo se impunham com a aquisição do software, conforme denunciado por organizações da sociedade civil brasileiras, como Transparência Internacional – Brasil, Instituto Igarapé, Instituto Sou da Paz, Conectas e Rede Liberdade.
As restrições ao acesso à informação não se restringiram a aspectos financeiros ou a licitações. O governo Bolsonaro, ao passo em que dobrou o número de militares que ocupam cargos em seu governo, inclusive do alto escalão, como ministros, também tornou-se responsável por reiterados ataques ao direito de acesso à informação e pelo aumento da opacidade. As instituições responsáveis pela segurança e defesa do Estado normalmente apresentam baixos níveis de transparência e abertura sobre suas ações ao escrutínio público – muitas vezes, devido à justificativa de segredo de Estado – e, seguindo essa tendência, a militarização do governo federal foi acompanhada de uma diminuição da transparência no seu governo.
Levantamentos e episódios recentes que envolvem o presidente da República, seus familiares e membros do governo que também são militares ilustram que a abertura do Estado que vinha sendo fortalecida nos últimos dez anos foi interrompida por um movimento de reiterados ataques ao acesso à informação. Entre eles, destacam-se:
- O uso de brechas legais para descumprir a LAI por parte Marinha, Exército e Aeronáutica;
- O Ministério da Defesa apresentou a maior redução na proporção de pedidos de acesso à informação atendidos, na comparação com governos anteriores;
- A tentativa de limitar o alcance da Lei de Acesso à Informação por parte do Presidente da República, notadamente com o Decreto nº 9.690, de 2019, que propôs aumentar o número de servidores com poderes para classificar documentos como secretos e ultrassecretos;
- A participação do ex-ministro da Saúde e militar da ativa Eduardo Pazuello em manifestação de demonstração de apoio ao Presidente da República, seguido do seu processo por ter descumprido o Regulamento Disciplinar do Exército ter sido escondido por um sigilo de até 100 anos pelo Exército.
Vale mencionar, também, questões relativas à pandemia que, sem dúvida, impactam e aumentam os riscos de corrupção no setor defesa. A supervisão legislativa sobre o setor de defesa foi impactada pelo modelo adotado pelo Congresso Nacional de trabalho remoto, que reduziu a frequência das reuniões de comissões parlamentares responsáveis pelo tema e prejudicou a transparência e as oportunidades de participação da sociedade civil organizada nestas discussões. Sob a justificativa de se adequar às restrições impostas pela pandemia, houve também tentativas de reduzir a efetividade e o alcance da Lei de Acesso à Informação, o que certamente impactaria a transparência das informações de órgãos de defesa e segurança.
Com relação aos riscos de pessoal, a maior deficiência do ordenamento brasileiro é a ausência de mecanismos mais robustos para proteger indivíduos que denunciam irregularidades. A legislação brasileira não define de modo claro o processo que garante a proteção destas denunciantes contra retaliação, nem tampouco oferece as necessárias previsões sobre anonimato de denunciantes. Faltam, ainda, mecanismos para incentivar a proteção de denunciantes no setor privado. À semelhança da ausência de regulamentação do lobby, a falta de um diploma legislativo que regulamente de forma completa e adequada a proteção de whistleblowers ameaça esforços de prevenção e combate à corrupção no Brasil.
De modo resumido, o GDI 2020 evidenciou principalmente três questões específicas sobre as quais o Brasil precisa avançar para fortalecer seus mecanismos de combate à corrupção com impacto específico e especialmente relevante, ainda que não exclusivo, sobre o setor de defesa: (i) regulamentar o lobby; (ii) ampliar a transparência com a defesa e a plena implementação da Lei de Acesso à Informação; e (iii) incentivar e garantir a proteção de denunciantes de irregularidades.
Maria Dominguez é pesquisadora da Transparência Internacional - Brasil e Guilherme France é Pesquisador Sênior do FGVethics (Centro de Estudos em Ética, Transparência, Integridade e Compliance) na FGV EAESP.