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Estudos e Práticas Anticorrupção

Existem evidências quantitativas de viés partidário nas sentenças da Operação Lava Jato? 

Publicação avalia se existiu viés partidário sistemático nas decisões de magistrados de primeira instância da Lava Jato em Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo

A Operação Lava Jato completou dez anos em março último e ainda divide opiniões no Brasil. As percepções sobre como a operação tratou diferentes investigados e réus ilustram isso. Levantamento da Quaest no início do ano indicou que 28% dos entrevistados acreditam que a Lava Jato investigou principalmente o PT e 23% acreditam que ela investigou todos os partidos igualmente. Apenas 1% e 2% acreditam que ela investigou principalmente o PSDB e o MDB, respectivamente. Outros 22% acreditam que ela não investigou nenhum partido e, finalmente, 24% não sabem, não responderam ou não concordaram com nenhuma das opções fornecidas pela pesquisa. 

Que políticos do PT foram não apenas investigados, mas também punidos no âmbito da Operação Lava Jato, é fato indiscutível para qualquer observador atento à realidade política brasileira. O então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi investigado, denunciado, condenado e preso pela Lava Jato. O mesmo ocorreu com outras lideranças do PT, como José Dirceu e Antonio Palocci. Ao mesmo tempo, as condenações e prisões de políticos importantes do MDB, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, sugerem que não somente políticos do PT foram tratados com severidade pela operação. Já os casos envolvendo lideranças do PSDB, como Aécio Neves e José Serra, oferecem um contraponto: embora eles tenham sido denunciados, nunca chegaram a ser condenados ou presos na operação. 

Mas, então, qual é a resposta à pergunta sobre a existência ou não de viés partidário na Operação Lava Jato? Houve diferenças no tratamento conferido pela operação aos diferentes réus? Ela abordou de forma mais severa os políticos de algum partido do que os políticos de outros partidos? Foram os políticos do PT os alvos preferenciais da operação? Muitas das respostas correntes a essas perguntas não escapam à ampla polarização política do país. O caso do presidente Lula provavelmente epitomiza isso: de acordo com o mesmo levantamento da Quaest 43% acreditam que ele “é culpado e deveria estar preso”, ao passo que outros exatos 43% acreditam que ele “sempre foi inocente”.  

Buscando contornar a polarização e reconhecendo o manancial de trabalhos acadêmicos sobre a Operação Lava Jato, nosso objetivo nesse artigo é chamar a atenção para alguns estudos recentes que ajudam a iluminar as indagações a respeito do viés partidário da operação. Para tanto, relatamos aqui os achados de pesquisas que conduzimos de forma independente uns dos outros, como parte de diferentes projetos de pesquisa que congregaram pesquisadores em universidades no Brasil e no exterior e que chegaram a conclusões semelhantes sobre o tema. Isto é, mesmo sem nos conhecermos até muito recentemente, participamos de diferentes pesquisas que, no entanto, alcançaram resultados na mesma direção. As publicações com os resultados das três pesquisas estão aqui [1], aqui [2] e aqui [3]

Nosso objetivo nessas pesquisas foi avaliar se percepções sobre parcialidade na Operação Lava Jato, muitas vezes baseadas em casos específicos como a condenação do presidente Lula, se sustentam quando olhamos para o universo de réus denunciados no âmbito da operação. Em outras palavras, buscamos avaliar se existiu viés partidário sistemático nas decisões de magistrados de primeira instância da Lava Jato em Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo. Denúncias envolvendo políticos do alto escalão são obviamente importantes e merecem ser analisadas a fundo; contudo, não podemos perder de vista que a Lava Jato se refere a um conjunto de investigações que resultaram em denúncias contra mais de mil pessoas, incluindo vários políticos de diferentes partidos. 

Longe de tentar responder a todas as questões relativas ao viés partidário da Operação Lava Jato, o que essas três pesquisas fizeram foi analisar quantitativamente as suas sentenças de mérito e, nelas, como foram julgados os diferentes réus das ações penais. Inspirados em uma longeva tradição de estudos sobre comportamento judicial e sentenciamento, as nossas diferentes análises indagaram se – e em qual medida – alguns réus apresentaram maiores chances de condenação do que outros e, dentre os condenados, se alguns deles receberam penas mais elevadas do que outros. Em meio à totalidade dos réus da operação, na qual os políticos eleitos eram uma minoria, também analisamos se aqueles filiados a alguns partidos políticos apresentaram maiores chances de condenação do que os filiados a outros partidos, bem como as diferenças em relação às respectivas penas aplicadas. Para responder essas perguntas, usamos métodos quantitativos que nos permitem examinar como uma variável específica – como a filiação partidária dos réus – afeta as chances de serem condenados, bem como a severidade das suas penas e multas, mesmo quando se observam outros fatores, como agravantes e atenuantes. 

Feitas as análises, o que observamos nas três pesquisas foram resultados muito semelhantes, a saber: não há evidência empírica quantitativa que permita afirmar ter havido viés partidário nas sentenças de primeira instância da Operação Lava Jato, tanto em relação às chances de condenação, como em relação às penas aplicadas aos condenados. Dito de outra forma, examinando as sentenças proferidas por juízes responsáveis por casos da Operação Lava Jato, essas pesquisas não encontraram evidência quantitativa que permita afirmar que os juízes da operação condenaram mais, ou a penas maiores, os políticos de um partido do que os políticos de outro partido. Essas mesmas pesquisas, contudo, indicaram que os políticos foram os réus julgados com maior severidade dentre todos os tipos de réus julgados pela operação, apresentando chances de condenação significativamente maiores e penas mais elevadas, em média, do que todos os demais tipos de réus (empresários, operadores financeiros, servidores públicos, executivos etc.). 

Nas sentenças de mérito que julgaram ações penais da Operação Lava Jato, portanto, mais do que viés contra um partido político específico, o que parece ter ocorrido foi viés contra os políticos como um todo, comparativamente aos demais tipos de réus. Essas conclusões permanecem inalteradas ao mantermos constantes, por meio de controles estatísticos, o impacto de variáveis como os crimes pelos quais os réus foram acusados, os partidos aos quais pertencem os réus, os tipos de provas presentes nos processos, os valores envolvidos nos casos, a presença de delatores entre os réus e corréus, e as diferentes varas e juízes responsáveis por julgar os casos da operação, entre outros.[4] 

Esses resultados permitem afirmar que inexistiu qualquer tipo de viés partidário no âmbito de toda a Operação Lava Jato? Obviamente não. Dada a amplitude da operação, o fato é que mais pesquisas são necessárias para afastar a possibilidade de viés partidário na Lava Jato. O que os resultados de nossas três pesquisas indicam é que isso não parece ter ocorrido no julgamento de mérito das ações penais em primeira instância no que se refere às decisões de condenar ou não os diferentes réus, e de aplicar-lhes maiores ou menores penas.  

Assim, se houve viés partidário no âmbito da Operação Lava Jato a ser evidenciado quantitativamente, é mais provável que ele possa ser observado em outras decisões tomadas no curso dos processos e investigações. Essas incluem, por um lado, decisões sobre a velocidade da tramitação processual, decisões de submeter ou não as denúncias ao julgamento de mérito, bem como outras decisões de caráter processual (e.g., produção de provas, sigilos etc.). Ainda, é possível que decisões tomadas por magistrados em outras instâncias (Tribunais Regionais Federais, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal) tenham apresentado viés. Por outro lado, há a possibilidade de viés em decisões tomadas não só por magistrados, mas também por membros do Ministério Público Federal que atuaram na operação. Essas incluem, por exemplo, as decisões sobre quais investigados denunciar, com quais investigados negociar acordos de colaboração premiada, bem como sobre os tipos e a quantidade de crimes pelas quais os diferentes acusados foram denunciados, entre outros.  

De igual forma, o fato de que não parece haver evidência quantitativa sobre viés partidário no julgamento do mérito em primeira instância das ações penais tampouco afasta outros debates sobre o funcionamento da operação. As pesquisas aqui revisadas, portanto, não discutem se houve violações de direitos processuais dos réus, ou em qual medida elas ocorreram. Não discutimos se houve uso abusivo de colaborações premiadas, de conduções coercitivas, de prisões preventivas e temporárias, se houve condenações com base em provas frágeis, ou se os critérios de competência processual dos casos eram adequados, por exemplo. Todas essas discussões são válidas e importantes, e muitas já foram realizadas em outros trabalhos, particularmente no mundo jurídico. Novamente, os achados aqui sugerem apenas que os juízes julgaram os políticos, independentemente de seus partidos, de forma mais severa do que os demais réus. Se houve abusos processuais, os resultados dessas pesquisas sugerem ser provável que eles tenham se distribuído de forma mais ou menos igual entre os políticos de diferentes partidos, ao invés de terem sido direcionados a apenas um deles. Isso, todavia, mereceria ser objeto de nova pesquisa. 

Ainda há muito o que se pesquisar sobre a Operação Lava Jato. A ampla disponibilidade de dados possibilita que esse diálogo seja baseado em evidências empíricas, contornando, ao menos parcialmente, a polarização sobre o tema. Nesse sentido, não apenas pesquisas quantitativas se prestam à análise, podendo ser complementadas ou nuançadas por pesquisas qualitativas transparentes. Em todos esses casos, vale ressaltar que, assim como a existência de viés partidário é um resultado possível das pesquisas, também o são a sua ausência e a existência de um viés direcionado aos políticos como um todo, conforme encontramos em nossos diferentes trabalhos. As conclusões, não custa lembrar, não dependem da posição político-partidária do pesquisador, e sim do seu uso adequado de diferentes métodos de pesquisa e da validação por pares. Passados mais de dez anos do início da operação, é nossa esperança que o debate possa ser travado nesses termos. 

  1. Trombini, Maria Eugenia. Legal Professionals in White-Collar Crime: Knowing, Thinking and Acting. Springer, 2023, disponível em: https://doi.org/10.1007/978-3-658-40747-6. ↩︎
  2. Da Ros, Luciano, Luísa Zanini da Fontoura, Sérgio Simoni Junior, and Matthew M. Taylor. “Moro’s Opinions: A Quantitative Analysis of Sentencing in Operation Car Wash.” In The Fight against Systemic Corruption: Lessons from Brazil (2013–2022), pp. 111-139. Springer, 2024, disponível em: https://doi.org/10.1007/978-3-658-43579-0_5. ↩︎
  3. Vilaça, Luiz, Marco Morucci, e Victoria Paniagua. “Antipolitical class bias in corruption sentencing.” American Journal of Political Science, 2024, disponível em: https://doi.org/10.1111/ajps.12885. ↩︎
  4. Apesar das muitas congruências, nem todos os nossos resultados foram idênticos, sendo as diferenças decorrentes de diferentes técnicas de pesquisa e amostragem. Parte das nossas pesquisas aponta, por exemplo, que quando consideramos possíveis explicações alternativas, o viés de juízes contra a classe política é especialmente forte nas decisões sobre a dosimetria das penas, mas desaparece nas decisões sobre a condenação ou não dos réus. Outra parte das pesquisas indica, por sua vez, que ao menos um dos juízes responsáveis pela operação condenou todos os políticos que julgou no mérito, algo que não ocorreu com nenhum outro tipo de réu sob sua jurisdição. De igual forma, outra parte das pesquisas indica que esse viés contrário aos políticos foi especialmente pronunciado em contraste com o tratamento conferido aos altos executivos das empreiteiras integrantes do cartel na Petrobras, que inclui executivos e engenheiros com senioridade. ↩︎
  • Luciano Da Ros

    Luciano Da Ros é professor na Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista de produtividade do CNPq, pesquisador do INCT QualiGov e doutor em ciência política pela Universidade de Illinois, Chicago. Coordenou a Área Temática “Política, Direito e Judiciário” da Associação Brasileira de Ciência Política entre 2020 e 2024 e foi diretor da Regional Sul da mesma associação entre 2021 e 2023. É autor de Brazilian Politics on Trial (com Matthew M. Taylor) e de diversos artigos e capítulos de livros sobre instituições judiciais, accountability e corrupção.

  • Maria Eugenia Trombini

    Maria Eugenia Trombini é pesquisadora sênior no Instituto Igarapé e pesquisadora associada ao Centro de Estudos Ibero-americanos de Heidelberg. Sua tese de doutorado em sociologia, Legal Professionals in White-Collar Crime: Knowing, Thinking and Acting, defendida na Universidade de Heidelberg, ganhou o prêmio Gerhard-Ott Preis. É autora de diversos artigos e capítulos de livros e este ano coeditou o livro The Fight against Systemic Corruption: Lessons from Brazil (2013–2022).

  • Luiz Vilaça

    Luiz Vilaça é professor de sociologia do Bowdoin College, e doutor em sociologia pela Universidade de Notre Dame, ambos nos Estados Unidos. Ele pesquisa como procuradores desenvolvem capacidades para investigar e denunciar casos de grande corrupção, bem como os fatores que levam juízes a serem mais rígidos em sentenças e apelações nesses casos. Sua pesquisa foi publicada em periódicos como American Journal of Political Science, Social Forces, Social Problems, Law & Society Review, entre outros.

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A Rede Brasileira de Estudos e Práticas Anticorrupção é uma iniciativa da Transparência Internacional – Brasil que busca incentivar, ampliar, qualificar, aplicar e formalizar parte do conhecimento sobre o fenômeno da corrupção no país, assim como capacitar atores-chave através da cooperação sistematizada entre especialistas atuantes nos diferentes Poderes, na academia, no setor privado e na sociedade civil.

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