A Medida Provisória nº 928 de 2020 determinou a suspensão dos prazos para resposta de pedidos de acesso à informação em órgãos públicos cujos servidores se encontrem em regime de quarentena ou teletrabalho e que dependem de acesso presencial destes agentes para obter a informação requerida. Foram suspensos também os prazos de pedidos que dependam de agentes públicos diretamente envolvidos no enfrentamento da crise provocada pelo COVID-19.
Esta última hipótese de suspensão — ainda que compreensível em face da necessidade de se focar recursos humanos no atendimento das demandas geradas pela crise — parece conflitar diretamente com a priorização, também determinada pela medida provisória, dos pedidos de acesso à informação relacionados com as medidas de enfrentamento à crise.
A abrangência das hipóteses para suspensão do prazo é significativamente ampliada pela falta de informação geral sobre quais são as informações disponíveis para os agentes públicos realizando teletrabalho e quais dependem de sua presença física e, ainda, sobre a indefinição do que constitui um agente público “envolvido com as medidas de enfrentamento da situação de emergência”. Afinal, neste momento, se encontra todo o Estado brasileiro comprometido com combate da pandemia.
O prazo de duração da suspensão corresponderá à duração do estado de calamidade pública, recém-declarado pelo governo e ratificado pelo Congresso Nacional. O encerramento do estado de calamidade não necessariamente corresponderá, todavia, à normalização do regime de trabalho dos agentes públicos, que é, em tese, a justificativa dessa medida provisória. Afinal, a principal justificativa para a declaração do estado de calamidade foi a necessidade de ampliar gastos públicos. Por fim, a necessidade de reiteração dos pedidos, ao fim desse período, é absolutamente descabida já que quem determinou a suspensão dos prazos foi a própria Administração Pública, e não o cidadão.
A crise provocada pelo COVID-19 é global, de modo que nada mais natural do que buscar entender como outros países têm lidado com premência de se garantir a transparência das informações públicas em um cenário de pandemia global.
Referência internacional em termos de legislação sobre acesso à informação, o Instituto Nacional de Acesso à Informação do México recomendou à população que deixe de buscar, presencialmente, atendimento a dúvidas e demandas, priorizando as formas de contato não presenciais (por telefone ou e-mail).
Outros países buscaram soluções na consensualidade entre o requerente e o órgão responsável por fornecer a informação. O Office of the Australian Information Commissioner (OAIC) recomendou que os agentes públicos busquem explicar os impactos da crise sobre o funcionamento daquele órgão e obtenham a concordância dos requerentes para uma prorrogação do prazo. No caso de uma recusa, os agentes públicos ainda assim poderiam pedir essa extensão de prazo ao órgão superior, no caso, o próprio OICA.
A inspiração australiana poderia levar à atribuição à CGU ou à Comissão Mista de Reavaliação de Informações da função de validar eventuais pedidos (justificados) de suspensão ou, ao menos, de monitorá-los. Nos níveis estadual e municipal é menos claro quem poderia desempenhar esta função. De fato, a implementação da Lei de Acesso à Informação nestes níveis tem sido mais lenta, o que torna as repercussões desta MP ainda mais preocupantes.
No Reino Unido, apesar de o Information Commissioner’s Office (ICO) reconhecer o momento de crise e seus consequentes desafios, os quais impõem a redistribuição de recursos humanos e financeiros, sinalizou-se a impossibilidade de prorrogar prazo legais. Para além de garantir uma comunicação com a população sobre estas limitações e os decorrentes atrasos no atendimento de pedidos de acesso à informação, o ICO confirmou que não penalizaria autoridades que priorizassem outras áreas de atuação ou adaptassem sua forma de trabalho nesse período excepcional.
Seguindo esta toada, ao invés de suspender indefinidamente os prazos para atendimento dos pedidos, poderia o governo ter suspendido a aplicação das hipóteses de responsabilização dos agentes públicos por eventuais atrasos, previstas no art. 65, I da Lei de Acesso à Informação. Assim, eventual processo de responsabilização só seria instaurado, posteriormente, ao fim da crise, com uma análise que demonstrasse o não enquadramento do caso nas exceções previstas.
De forma semelhante, o Office of the Information Commissioner (OCI) do Canadá reafirmou não só a impossibilidade de se estender os prazos legais para atendimento de pedidos de acesso à informação, mas também que continuaria a receber e processar todos pedidos e reclamações. Reconheceu, no entanto, a necessidade de uma maior flexibilidade e de informar à população sobre a redução na capacidade de se processar esses pedidos.
Em uma nota adicional especialmente relevante neste momento, o OCI reiterou também a importância de que agentes públicos em regime de teletrabalho mantenham boa práticas na documentação dos processos decisórios de que participam, conforme prevê a legislação.
A crise desencadeada pelo COVID-19 representa, para além de um desafio à provisão de informações transparentes pelo governo, uma oportunidade para que a sociedade civil demonstre a importância desta transparência para monitorar gastos públicos e demais medidas adotadas para responder à crise. Só assim poderemos garantir a sua adequação, tempestividade e probidade.
Deve-se considerar que os riscos de corrupção, na atual crise, não se restringem ao regime emergencial (corretamente adotado) de contratações públicas com dispensa de licitação. Muito mais grave é o risco da chamada “captura do estado” na política fiscal expansiva de resposta à crise econômica (também correta), com ampliação extraordinária do gasto público e isenções tributárias, que serão disputadas por setores, indústrias e indivíduos com acesso desigual aos tomadores de decisão — e é aí que a transparência se faz absolutamente imprescindível na defesa do interesse público.
Por fim, neste momento de crise global, em que diversos governos autoritários mundo afora têm aproveitado as circunstâncias excepcionais para restringir direitos e liberdades fundamentais, deve ser extremamente justificada e proporcional às necessidades qualquer restrição aos direitos constitucionalmente garantidos dos brasileiros, como o direito de acesso à informação.
Esta nota foi originalmente publicada em 24 de março de 2020, pelo Medium da Transparência Internacional – Brasil e replicada posteriormente neste blog.