Por Nicole Verillo*
Na Tanzânia, várias funcionárias de uma corte começaram a adoecer uma após a outra. Elas foram diagnosticadas com o vírus HIV. Descobriu-se depois que o funcionário do tribunal que as supervisionava as forçava a dormir com ele se quisessem receber o pagamento de horas extras. Ele era um homem que vivia com HIV.
Uma mãe no Peru recebeu duas opções de um juiz: fazer sexo com ele ou não ter a guarda do filho. Outra mãe, no Brasil, recebeu a mesma “proposta” de um médico para conseguir medicamento gratuito para a filha hospitalizada. Uma mulher que lutava por sua sobrevivência em Moçambique, após ter sua cidade devastada por um ciclone, recebeu pedido de propina em troca de comida. Ela não tinha dinheiro e, então, como muitas de suas vizinhas, era obrigada a fazer sexo para receber um saco de arroz.
Todos esses casos tratam de extorsão sexual, que ocorre quando corrupção e exploração sexual se cruzam. As mulheres são o alvo principal. Em vez de serem solicitadas a pagar suborno em dinheiro para ter acesso a serviços básicos, acesso à Justiça e ampla garantia de direitos, elas são pressionadas a pagar com seus próprios corpos.
Em todo o mundo, mulheres sofrem desproporcionalmente mais com a corrupção. Para além da extorsão sexual, leis injustas e misoginia tornam difícil ou mesmo impossível que elas até mesmo participem da política. O cenário no Brasil é extremo.
Ainda somos minoria na política. Somente 16,2% dos eleitos em 2018 são do sexo feminino. E essas que ocupam cargos eletivos e posições de poder enfrentam, diariamente, preconceito, ataques, discriminação e desrespeito por serem mulheres. Em uma escala crescente e preocupante, vemos a disseminação de injúrias e difamação contra senadoras e deputadas de todos os campos e ideologias. Entre elas, Gleisi Hoffmann (PT/PR), Janaina Paschoal (PSL/SP), Joice Hasselmann (PSL/SP), Sâmia Bomfim (PSOL/SP) e Tabata Amaral (PDT/SP) foram atacadas em episódios recentes por parlamentares e pelas redes sociais com termos pejorativos, insinuações sexuais e críticas a seus corpos.
Porém, os ataques não são só virtuais e nem dirigidos apenas a parlamentares. Ser mulher no Congresso Nacional é desafiador. O assédio de parlamentares e assessores é assustadoramente rotineiro e acontece de forma desrespeitosa, silenciosa e perversa. Trabalhar na Câmara e no Senado, como em muitos outros ambientes, significa ter nossa competência questionada e precisar prová-la o tempo inteiro. Muitas vezes, somente ao lado de colegas de trabalho homens que é possível evitar o assédio.
Também é perceptível que as mulheres que, através do seu trabalho, denunciam grupos ou pessoas sobre os quais recaem suspeitas de corrupção também são as mais perseguidas. Todos os dias, no Brasil e no mundo, jornalistas são mortas, agredidas, ameaçadas e difamadas — tudo por simplesmente realizarem o seu trabalho e perseguirem a verdade.
No último mês, mais uma vez, foi chocante observar ataques machistas e misóginos do presidente Jair Bolsonaro a mulheres jornalistas que publicaram matérias e dados sobre seu governo — numa clara tentativa de calar a voz dessas mulheres e ferir a liberdade de imprensa. Os ataques são pejorativos, violentos e sexistas e não têm absolutamente nada a ver com sua atuação profissional. Em fevereiro, a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de São Paulo, foi vítima, por exemplo, de uma afirmação mentirosa, reiterada pelo presidente e um de seus filhos, de que teria oferecido favores sexuais a um homem para obter informações para uma reportagem. Crítica nenhuma sobre nada. Apenas discurso de ódio contra uma mulher. A colunista do jornal O Estado de S. Paulo e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura, Vera Magalhães, chegou a ter dados pessoais e de seus familiares expostos na internet após publicar matéria crítica ao governo. São dois exemplos entre outros casos que ocorreram com outras jornalistas mulheres que, infelizmente, poderiam ser citados aqui. E é importante notar que o presidente e seus apoiadores não destinam a mesma carga de virulência nos ataques que, eventualmente, proferem contra jornalistas homens.
Uma imprensa livre e atuante é pilar fundamental para o combate à corrupção. Por isso, a Transparência Internacional defende, nos 110 países onde está presente que governos e sociedade empreguem todos os esforços para assegurar liberdade, segurança e recursos necessários para que os jornalistas realizem seu trabalho de informar a população — e para que esta fiscalize os poderes constituídos.
Nosso principal indicador — o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), que avalia 180 países e territórios desde 1995 — destaca todos os anos a relação entre a liberdade de imprensa e o sucesso no combate à corrupção. Entre os países com menor percepção de corrupção no mundo estão aqueles com regimes democráticos consolidados e ampla liberdade de imprensa. Na outra ponta, entre os mais corruptos, estão os regimes autoritários. Os dados evidenciam que uma imprensa livre e atuante é peça fundamental do combate à corrupção. Não fosse por ela diversos casos de pagamento de propina e desvios não seriam conhecidos pela população e muito menos investigados pela Justiça.
Ao atacar as mulheres jornalistas, o governo Bolsonaro — que se elegeu com base em um forte discurso anticorrupção — avança, portanto, em sentido contrário ao da clássica receita internacional de luta contra a corrupção. Ao hostilizá-las recorrentemente e insuflar o ódio da população contra elas, o governo procura exercer uma forma de censura velada. O possível propósito é o de espalhar a insegurança e o medo para que suas vozes críticas se calem.
Os ataques à imprensa e à sociedade civil, somados a outros retrocessos no arcabouço legal e institucional anticorrupção no Brasil, fizeram com que o país mantivesse, pelo segundo ano, uma nota de 35 pontos no Índice de Percepção da Corrupção — sua pior pontuação na série histórica — e ocupasse, assim, o 106º lugar de um total de 180 países e territórios avaliados. Em uma escala que vai de 0 a 100, 0 no IPC significa que o país é percebido como altamente corrupto e 100 significa que é percebido como muito íntegro.
Mudar esse cenário é imperativo e ações opostas às que têm sido praticadas por importantes figuras do governo são urgentes. Não podemos mais aceitar nenhuma tentativa de intimidar e difamar mulheres através de ataques sexistas. O jornalismo deve sim ser objeto de escrutínio público. Porém, deslegitimar o papel da imprensa e usar discurso misógino colocam em sério risco não apenas a luta contra a corrupção, mas também deterioram o próprio sistema democrático.
A corrupção agrava a desigualdade de gênero, impede o empoderamento das mulheres e constitui clara violação dos direitos humanos. Sendo mulher, é preciso ainda mais coragem para enfrentar a violência, o assédio e a extorsão sexual e continuar investigando a corrupção e lutando para ocupar a política no país. E é com coragem que nós, mulheres, seguiremos, neste 8 de março e em todos os outros dias, olhando para o impacto da corrupção em nossas vidas e movendo todos os esforços para remover as barreiras que tentam nos impedir de participar da política e ser parte fundamental dessa luta, uma luta por direitos.
*Nicole Verillo é gerente de Apoio e Incidência Anticorrupção e fundadora da Transparência Internacional — Brasil