Blog da Rede Brasileira de
Estudos e Práticas Anticorrupção

Metodologia de cálculo de ressarcimento em acordos de leniência

O advento da Lei 12.846/2013, denominada Lei Anticorrupção (LAC)[i], voltada à responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, significou marco jurídico relevante no combate à corrupção no Brasil. Dada a complexidade do fenômeno, cujo enfrentamento envolve uma série de atores estatais, essa norma também proporcionou momentos de arranjos institucionais complexos e apontamentos de arestas.

Uma destas arestas consiste na necessária parametrização da mensuração dos  valores devidos pelos responsáveis, especialmente quando da celebração dos denominados acordos de leniência. Vale lembrar que além da obrigatoriedade de reparação integral do dano causado, às pessoas jurídicas responsáveis pelos atos lesivos é imposta uma sanção de natureza pecuniária.

Entre 2013 e 2022, o ambiente institucional brasileiro de celebração dos acordos de leniência previstos na Lei nº 12.843/2013i gerou fortes críticas, principalmente pela alegada falta de previsibilidade na mensuração dos valores devidos pelas empresas colaboradoras. O problema central residia, para muitos, na multiplicidade de atores (Ministério Público Federal – MPF, Controladoria – Geral da União – CGU, Advocacia- Geral da União – AGU e Tribunal de Contas da União – TCU), cada qual aplicando metodologias próprias, sem coordenação normativa clara. 

O MPF aplicava critérios penais e negociais, com foco na reparação genérica e no efeito dissuasório. Já CGU, AGU e TCU seguiam linhas orientadas ao ressarcimento ao erário e sanções administrativas, com alguma metodologia de mensuração de dano.  Esse contexto gerava ambiente de insegurança jurídica para empresas, retrabalho institucional e risco de sanções múltiplas, em especial quando se consideravam as diversas naturezas jurídicas dos valores a comporem os acordos e suas respectivas mensurações.  

Em potencial resposta à fragmentação apontada, foi firmado o primeiro Acordo de Cooperação Técnica (ACT) – entre AGU, CGU, TCU e Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) em 2020[ii], sem a participação formal do MPF, com o objetivo de estabelecer parâmetros para viabilizar acordos mais seguros e coerentes.  

O ACT previa como princípio específico a objetividade dos parâmetros para fixação proporcional e razoável dos valores a serem pagos a partir de dois tipos de rubricas: uma de natureza sancionatória, relativa às multas da Lei nº 12.846/2013 e da Lei nº 8.429/1992[iii], e outra específica, relativa a uma estimativa justa e consensual dos valores a serem ressarcidos. 

Além disso, quando algum ilícito revelado na negociação envolvesse fatos sujeitos à jurisdição do TCU, AGU e CGU deveriam encaminhar-lhe informações necessárias e suficientes para a estimação dos danos decorrentes de tais fatos, buscando parametrizar metodologia específica para sua apuração. 

No contexto pós ACT, o TCU editou a Instrução Normativa nº 95, de 21 de fevereiro de 2024[iv], ainda em vigor. Ela regulamenta, dentre outros, o procedimento de estimação dos danos decorrentes de fatos revelados na negociação de acordos de leniência que sejam sujeitos à jurisdição do TCU, a parametrização de metodologia específica para apuração de eventual dano e o procedimento destinado à manifestação do TCU no sentido de considerar que os valores negociados no acordo satisfazem ou não aos critérios estabelecidos para a quitação do dano por ele estimado.  

Segundo referida Instrução Normativa, após a comunicação pela CGU/AGU de que o acordo está pronto para ser assinado, caberá ao TCU manifestar-se sobre os valores informados. Assim, o TCU passou a manifestar anuência sobre o cálculo dos valores dos acordos celebrados por CGU e AGU. A metodologia de estimação do dano estipulada pela IN é a prevista no roteiro de auditoria do Tribunal para a quantificação de superfaturamento, sendo permitida a utilização de outros critérios acolhidos pela jurisprudência do TCU .

A Instrução Normativa TCU nº 95/2024, ao lado de outros avanços regulatórios de nível infralegal, como portarias conjuntas (CGU/AGU) e decretos federais que buscaram uniformizar o procedimento de negociação e estabelecer critérios objetivos para cálculo de valores devidos (dano, multa, devoluções voluntárias etc.), sinalizam tentativa de amadurecimento institucional, mas a pluralidade de atores e atribuições e o ambiente de competição institucional ainda dificultavam consensos.[v] 

Em abril de 2025, foi firmado novo Acordo de Cooperação Técnica entre AGU, CGU e MPF, com foco explícito na coordenação para combate à corrupção via acordos de leniência, sem a participação do TCU.[vi] A diferença-chave em relação ao modelo anterior, cujo expoente é o ACT de 2020, não revogado explicitamente, é que o novo ACT não faz qualquer menção ao TCU e à utilização de sua metodologia para cálculos dos valores devidos. Traz apenas disposição genérica, como forma de resolução de conflitos eventuais, de utilização de parâmetros pré-estabelecidos para o cálculo dos valores a serem pactuados em acordos de leniência com o fim de conferir previsibilidade aos colaboradores, priorizando a autonomia dos entes signatários na definição dos parâmetros de cálculo. Há ênfase, de qualquer forma, na previsibilidade, celeridade e segurança jurídica — pontos demandados há anos por empresas e estudiosos. 

O TCU, não signatário do novo ACT e no âmbito da atuação por consensualidade, criou paralelamente a Secretaria de Controle Externo para Soluções Consensuais (Secex Consenso), que atua como instância especializada em acordos e consensos administrativos da Corte e desenvolve e aplica metodologias próprias para cálculo de prejuízos ao erário, baseadas em standards técnicos e contábeis.[vii] 

Vale destacar, entretanto, que em acórdão recente, o TCU manifestou expressamente o acolhimento da metodologia adotada pela CGU no contexto do Acordo de Leniência celebrado entre a Samsung Heavy Industries e a AGU/CGU. O Tribunal de Contas parece ter adotado a premissa de atuação integrada entre as instituições, permitindo a convergência de valores.[viii]   

Embora o novo ACT represente um avanço significativo em termos de governança interinstitucional, a eventual atuação paralela do TCU, dada a não revogação expressa do ACT de 2020 e a vigência da Instrução Normativa TCU nº 95, de 21 de fevereiro de 2024, pode reacender debates constitucionais sobre multiplicidade e insegurança jurídica quanto à quantificação dos valores devidos e a metodologia de cálculo.  

Por outro lado, a iniciativa da CGU de promover consulta pública sobre normativo em acordos de leniência parece caminhar pela busca de previsibilidade, permitindo a participação ampla na fixação das regras que incidirão, inclusive, quanto a trato e mensuração de valores. [ix]

O Brasil evolui na tentativa de consolidar um modelo funcional de acordos de leniência, saindo de um ambiente com apontado desarranjo para uma arquitetura institucional mais coesa. O novo ACT (2025) sinaliza avanço, pode gerar maior eficácia, clareza metodológica e resultados concretos, mas o “teste de fogo” parece ser a efetiva convergência prática das metodologias de cálculo e a relação entre os entes signatários e o TCU, tudo ponderado pelo momento e características das respectivas atribuições institucionais. 

O futuro dos acordos de leniência dependerá da capacidade de se manter estabilidade normativa, previsibilidade jurídica e colaboração efetiva entre instituições com atribuições complementares e/ou sequenciais bem demarcadas, indicando maior maturidade e compreensão dos papeis institucionais e, pois, maior sustentabilidade à rede de accountability horizontal brasileira. 


[i] BRASIL. Lei nº 12.843, de 1º de agosto de 2013. Disponível em: L12846. Acesso em: jul. 2025

[ii] BRASIL. ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA PÚBLICA. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Acordo de cooperação técnica em matéria de combate à corrupção no Brasil, especialmente em relação aos acordos de leniência da Lei  12.846 de 2013, de 06 de agosto de 2020. Disponível em: Scanned Document. Acesso em: jul. 2025. 

[iii] BRASIL. Lei 8.429, de 2 de junho 1992. Disponível em: L8429. Acesso em: jul. 2025.

[iv] BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Instrução Normativa TCU nº 95, de 21 de fevereiro de 2024. Disponível em: 75452615. Acesso em: jul. 2025.

[v] A Reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230/2021) também trouxe novos contornos jurídicos ao ambiente da consensualidade, prevendo certa publicidade quanto a metodologias de cálculo, com remessa ao crivo do TCU em acordos de não-persecução penal. Entretanto, houve controle de constitucionalidade em relação ao papel do TCU nesses acordos, tendo o Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7236 proferido liminar a suspender o artigo 17-B, § 3º, da LIA, que exige a manifestação do Tribunal de Contas competente, no prazo de 90 dias, para o cálculo do ressarcimento em caso de acordo de não persecução penal com o Ministério Público. “Para o relator, entre outros pontos, a medida condiciona o exercício da atividade-fim do Ministério Público à atuação da Corte de Contas, em possível interferência na autonomia funcional do MP”. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro Alexandre de Moraes suspende parte de alterações da Lei de Improbidade Administrativa. Disponível em: Supremo Tribunal Federal. Acesso em: jul. 2025.  

[vi] BRASIL. ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Acordo de cooperação técnica CGU/AGU/MPF de 25 de abril de 2025. Disponível em: Acordo de Cooperação Técnica CGU/AGU/MPF, de 25 de abril de 2025. Acesso em: jul. 2025.

[vii] BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Você conhece a nova sistemática de soluções consensuais do TCU? Disponível em: Você conhece a nova sistemática de soluções consensuais do TCU? – Notícias | Portal TCU. Acesso em: jul. 2025.

[viii] BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. TC 014.084/2022-8. Relator: Min. Aroldo Cedraz. Ata n° 26/2025 – Plenário. Data da Sessão: 9/7/2025 – Ordinária. Disponível em: 014.084-2022-8-AC-TCE-Comissao-Interna-de-Apuracao-CIA.pdf. Acesso em: jul. 2025. 

[ix] BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. Controladoria abre consulta pública sobre atuação da CGU e AGU em acordos de leniência. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2025/07/controladoria-abre-consulta-publica-sobre-atuacao-da-cgu-e-agu-em-acordos-de-leniencia. Acesso em: ago. 2025.

  • Advogada em Compliance e Investigações Internas, especializada em compliance pela LAC, graduada em direito pela UFPE. Contato: [email protected]

  • Advogado da União. Pós-Graduado em Direito Público-PUC/MG. Pós-Graduado em Advocacia Pública-IDDE/UMA-Convênio Faculdade de Direitos Humanos-Coimbra. Mestre em Administração Pública- Fundação João Pinheiro/MG. Doutorando em Direito do Estado - USP – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ex-Coordenador-Geral de Defesa da Probidade do Departamento de Patrimônio e Probidade da Procuradoria-Geral da União. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4568574733465629

  • Vivian Leinz. Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo-Brasil). Foi pesquisadora visitante junto ao Católica Research Centre for the Future of Law (Lisboa). Mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo-Brasil). Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil). Líder do Grupo de Trabalho sobre a Lei Anticorrupção e Acordos de Leniência da Rede Brasileira de Estudos e Práticas Anticorrupção da Transparência Internacional Brasil. Membro do Grupo de Pesquisa de Direito Penal Econômico e Justiça Penal Internacional da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Procuradora da Fazenda Nacional.

Sobre este espaço

A Rede Brasileira de Estudos e Práticas Anticorrupção é uma iniciativa da Transparência Internacional – Brasil que busca incentivar, ampliar, qualificar, aplicar e formalizar parte do conhecimento sobre o fenômeno da corrupção no país, assim como capacitar atores-chave através da cooperação sistematizada entre especialistas atuantes nos diferentes Poderes, na academia, no setor privado e na sociedade civil.

O Blog da Rede é um espaço para para a promoção de discussões acadêmicas. Os textos publicados nesta editoria são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam, necessariamente, as opiniões, posicionamentos, recomendações ou trabalhos da Transparência Internacional.

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