Obras paradas há quase uma década, uma Unidade Básica de Saúde (UBS) com recurso federal pago, mas nenhum tijolo de pé, esgoto correndo a céu aberto, cidadãos sem abastecimento de água há dois anos apesar de contratos milionários para obras de saneamento, lixões próximos ao Rio Parnaíba, escolas apenas na fundação com contratos vencidos há anos, obras com execução parcial ou inexistente com mais de 80% dos recursos liberados. Em resumo, recursos públicos que deveriam garantir bem-estar, mas que foram consumidos por ineficiência, negligência e corrupção.
Esse é o retrato do que foi encontrado durante a 19ª edição da Marcha Contra a Corrupção e Pela Vida, uma das mais vigorosas expressões de controle social do país, que ocorre anualmente no Piauí. Liderada pela Força Tarefa Popular (FTP), a marcha atravessa a pé estradas de terra e asfalto, visita escolas inacabadas, postos de saúde prometidos e nunca entregues, estações de tratamento de água abandonadas e comunidades inteiras esquecidas pelo poder público. Em 2025, a marcha percorreu 150 quilômetros através de seis municípios, focando a fiscalização em políticas ligadas ao enfrentamento da mudança climática, dados os desafios locais e do fato que este ano a COP do Clima será no Brasil, em Belém.
A marcha não é um projeto de curto prazo. É uma mobilização de fôlego, construída por lideranças comunitárias e ativistas que se recusam a aceitar o descaso. A FTP não apenas denuncia, mas estimula a cidadania nos municípios por onde passa, qualifica o controle social e exige do Estado brasileiro que cumpra o seu dever constitucional de assegurar saúde, educação, saneamento e dignidade para todos e todas.
A corrupção não é uma abstração moral. Ela se manifesta através de crianças sem escola, famílias doentes pela ausência de água potável, idosos que morrem sem atendimento médico. Ela se esconde na falta de transparência, na ausência de placas informativas, em licitações obscuras, em obras superfaturadas ou jamais iniciadas. Ela se perpetua quando o controle institucional é omisso, a fiscalização é tardia, e o cidadão que denuncia é ignorado ou intimidado. Frente a esse cenário, a atuação da sociedade civil organizada, especialmente por meio de iniciativas como a da FTP, é essencial e transformadora. A marcha mostra que é possível – e necessário – democratizar o controle social do Estado, promover a auditoria cidadã e fazer valer os princípios da legalidade, da moralidade administrativa e da justiça social.
A marcha nasce da indignação e da esperança das pessoas que andam quilômetros para fiscalizar o que deveria ser básico: obras concluídas e serviços públicos funcionando. O que vimos pelo caminho, muitas vezes, são recursos que não chegam a quem precisa, viram obras fantasmas, inacabadas ou são desviados. Nosso papel é garantir que a sociedade tenha as ferramentas e o espaço para fiscalizar e cobrar das autoridades.

Corrupção e mudança climática
Para a Transparência Internacional – Brasil, para ser efetivo, o enfrentamento à mudança climática precisa caminhar lado a lado com o combate à corrupção. Os impactos devastadores de eventos extremos, incluindo agravamento de secas, enchentes e incêndios florestais, e do colapso de ecossistemas têm origem no aumento de emissões de gases do efeito estufa, que é muitas vezes viabilizado por falhas sistêmicas de governança e integridade pública. Isso inclui o enfraquecimento de políticas e órgãos ambientais e climáticos, a liberação irregular de licenças, fraudes em sistemas de registros que facilitam a grilagem de terras e influência indevida de interesses privados ligados a setores de alto impacto climático.
No nível local, mais do que focar apenas na mitigação das emissões, é essencial assegurar que as ações de adaptação climática — como obras de drenagem urbana, acesso ao saneamento básico, habitação em áreas seguras, fortalecimento da defesa civil e preparo dos sistemas públicos de saúde — sejam planejadas e executadas com transparência, participação da população e controle social efetivo.
Para o enfrentamento das mudanças climáticas é essencial que as comunidades locais estejam informadas e engajadas na fiscalização de obras e políticas que impactam diretamente o meio ambiente e a qualidade de vida. A marcha é uma plataforma de capacitação, engajamento e visibilidade para os cidadãos do Piauí e de outras regiões, promovendo participação social na defesa do clima e da transparência pública.
A marcha de 2025 terminou com uma audiência pública onde todos os órgãos de controle do Estado formam convidados. Além disso, a FTP já entregou ao TCE o relatório de denúncias em audiência específica e fará o mesmo com os demais órgãos.
Com base nas informações coletadas durante a marcha, elaboramos recomendações aos órgãos do Estado do Piauí. A Transparência Internacional – Brasil tem orgulho de apoiar e estar nessa luta.
Recomendações da Transparência Internacional – Brasil
1. Para o Tribunal de Contas do Estado do Piauí (TCE-PI) e Tribunal de Contas da União (TCU)
- Ampliar a realização de auditorias operacionais e de conformidade em obras de impacto ambiental e climático, como saneamento básico, incluindo abastecimento e tratamento de água e esgoto, manejo adequado de resíduos sólidos. Para a fiscalização de aspectos socioambientais de obras públicas, recomenda-se a utilização dos procedimentos de auditoria socioambientais desenvolvidos pelo Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas (IBRAOP);
- Aprimorar os mecanismos de participação e os canais de denúncias, bem como divulgá-los amplamente, promovendo o acompanhamento de fiscalizações realizadas pela sociedade civil organizada e cidadãos(ãs), como as da marcha.
- Monitorar as informações disponibilizadas nas placas de obras públicas, garantindo a inclusão de informações mínimas, como data de início, prazo de conclusão, nome e CNPJ da empresa contratada, valor total da obra, fonte do recurso (esfera e órgão) e canais para reclamações e denúncias;
- Avançar na garantia do cumprimento das obrigações de transparência e acesso à informação pelos municípios, conforme previsto, dentre outras, na Lei de Acesso à Informação (Lei Federal n° 12.527/2011), na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n° 101/2000) e na Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público (Lei Federal n°13.460/2017);
- Monitorar, por meio de auditorias operacionais e outros instrumentos, a elaboração e implementação do Plano Estadual de Mudanças Climáticas e Combate à Pobreza, previsto para lançamento em junho de 2025 pela Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Piauí (SEMARH). É importante que o Plano Estadual contenha, dentre outros: Plano de Trabalho, Modelo Metodológico, Inventário de Emissões dos Gases de Efeito Estufa e Análise de Riscos e Vulnerabilidades Climáticas;
- Realizar auditorias operacionais e de conformidade junto ao Fundo Estadual sobre Mudanças do Clima e Combate à Pobreza, conforme previsto pela lei estadual nº 6.140/2011, assegurando a destinação de recursos para ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
2. Para a Assembleia Legislativa do Piauí (ALEPI)
- Aprimorar a transparência da ALEPI, implementando as Recomendações de Transparência e Governança Pública para Assembleias Legislativas e os indicadores avaliados no ITGP – Módulo Legislativo;
- Estabelecer mecanismos transparentes e técnicos para a alocação de recursos via emendas parlamentares, reduzindo os riscos de corrupção associados à distribuição desses recursos;
- Fiscalizar a execução dos recursos destinados aos municípios e ao Estado via emendas parlamentares, especialmente aqueles aplicados na execução de obras públicas e oriundos de transferências do Novo PAC;
- Ampliar o diálogo com a sociedade civil organizada, por meio de audiências e frentes parlamentares temáticas de fortalecimento da transparência e da luta anticorrupção e em defesa do meio ambiente e do clima;
- Estabelecer uma Comissão Permanente de Meio Ambiente e Clima na ALEPI, com foco específico em acompanhar e fiscalizar políticas climáticas e ambientais, inclusive parcerias público-privadas, como a das Águas do Piauí.
- Revisar e aprimorar o Plano Plurianual do Estado do Piauí e sua Lei Orçamentária Anual, incluindo metas físicas e financeiras, orçamento e ações destinados a programas de combate às mudanças climáticas, com base na Lei estadual nº 6.140/2011, Lei federal nº 14.904/2024, Lei federal nº 12.187/2009 e no Plano Piauí 2030;
3. Para o Poder Executivo Municipal
- Garantir o acesso à água potável, esgotamento sanitário e gestão de resíduos sólidos, incluindo a extinção de lixões a céu aberto, em conformidade com a Lei federal nº 12.305/2010 (Política Nacional dos Resíduos Sólidos), Lei federal nº 14.026/2020 (Marco Legal do Saneamento Básico) e a Lei estadual nº 6.140/2011 (Política Estadual sobre Mudança do Clima e Combate à Pobreza);
- Aprimorar a transparência, implementando as Recomendações de Transparência e Governança Pública para Prefeituras, especialmente no que tange à transparência de obras públicas, garantindo maior oportunidade de controle social devido ao volume de recursos públicos envolvidos nesse setor, considerando o momento atual de investimento local do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC);
- Instalar, reativar e fortalecer os conselhos municipais de políticas públicas, assegurando paridade entre sociedade civil e governo e funcionamento efetivo;
- Criar ou fortalecer conselhos municipais de meio ambiente e fóruns municipais de mudanças climáticas, com a participação da sociedade civil, objetivando a discussão e proposição de ações de combate aos impactos das mudanças do clima nos municípios;
- Criar canais permanentes de escuta da população em relação a obras, políticas públicas e problemas locais, promovendo a participação cidadã na gestão pública;
- Fomentar ações educativas sobre controle social e direitos de acesso à informação, bem como de educação ambiental e climática, especialmente em escolas e comunidades;
- Fortalecer a capacidade técnica da gestão municipal para planejamento, execução e prestação de contas das obras públicas, promovendo capacitações e treinamentos para os servidores públicos;
- Buscar aprimorar o desempenho no Índice de Transparência e Governança Pública (ITGP), da Transparência Internacional – Brasil, aplicado pela Força Tarefa Popular no Piauí, a fim de fortalecer a transparência, mecanismos de governança e espaços e oportunidades de controle e participação social.
4. Para o Ministério Público
- Reforçar ações de fiscalização sobre obras paradas, atrasadas e/ou abandonadas, incluindo a notificação de gestores públicos para que prestem as informações necessárias e a interação com os conselhos municipais relacionados às políticas públicas impactadas (como saúde, educação e meio ambiente);
- Celebrar Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), quando couber, definindo cronogramas de retomada das obras paralisadas, com prazos e metas claros;
- Nos casos de improbidade administrativa e danos ao erário, priorizar as ações correspondentes buscando a responsabilização de gestores públicos, conforme previsto na Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa);
- Realizar e reforçar ações de fiscalização sobre as causas e impactos ambientais da disposição de resíduos em lixões, como no caso do município de Miguel Alves, incluindo a notificação de gestores públicos para que prestem as informações necessárias e a interação com os conselhos municipais de meio ambiente e saúde.