O acordo de leniência é instrumento consensual de resolução de conflitos instituído pela Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 20131, conhecida como “Lei Anticorrupção” (LAC), por meio do qual a pessoa jurídica se compromete a colaborar com a apuração do ilícito em troca da redução proporcional de sanções. Trata-se, ainda, de instrumento voltado à promoção da cultura de integridade, na medida em que exige da pessoa jurídica a adoção ou o aperfeiçoamento de programas de compliance como condição necessária à formalização do acordo.
No âmbito do Poder Executivo Federal, a competência para celebrar acordos de leniência foi atribuída à Controladoria-Geral da União (CGU), com participação da Advocacia-Geral da União (AGU). Todavia, desde sua implementação, o sistema brasileiro de combate à corrupção tem se mostrado atravessado por sobreposições institucionais, fato que gerou, desde o início da aplicação da LAC, debates acerca dos limites e eventuais conflitos de atribuições entre os diversos órgãos de controle nas tratativas relativas à celebração de acordos de leniência.
A partir de 2014, durante a deflagração da Operação Lava Jato, o Ministério Público Federal (MPF) passou a celebrar acordos de leniência com empresas investigadas, baseando-se na interpretação conjugada da LAC e da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992)2. A partir de 2016, no entanto, com a regulamentação da LAC por meio do Decreto nº 8.420/2015 (revogado posteriormente pelo Decreto nº 11.129/2022)3, CGU e AGU assumiram protagonismo na condução das negociações com empresas envolvidas. Tal movimento exigiu dessas instituições um esforço de articulação com outros órgãos, como o MPF e o Tribunal de Contas da União (TCU), com vistas à uniformização de entendimentos e à segurança jurídica necessária à aplicação do novo marco normativo.
Apesar da complexidade do cenário institucional permeado por divergências, diversas tentativas de coordenação existiram, o que culminou com a intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF), mas em caráter extrajudicial, como mediador das tratativas interinstitucionais voltadas à celebração de novos acordos e à adequação dos já existentes. Esse processo resultou, em 6 de agosto de 2020, na celebração do Acordo de Cooperação Técnica (ACT) entre CGU, AGU, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e o TCU.4 Importante destacar que, embora tenha participado das discussões, o MPF não aderiu ao ACT.5
Apenas em 2023 o STF foi instado a se manifestar, no exercício de sua competência jurisdicional, acerca da validade dos acordos de leniência celebrados pelo MPF antes da formalização do ACT. Isso ocorreu no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1051, proposta por PSOL, PCdoB e Solidariedade. Os autores da ação sustentam que os pactos firmados anteriormente ao ACT padecem de vícios que comprometeriam sua validade, entre os quais destacam-se coação, abusos na definição da base de cálculo das multas e distorções na parte pecuniária dos acordos, resultantes de uma atuação supostamente excessiva por parte do MPF.6
Na petição inicial, foram formulados os seguintes pedidos: (i) suspensão liminar das obrigações pecuniárias impostas em todos os acordos de leniência celebrados antes da assinatura do ACT, o que incluiria tanto indenizações quanto multas; (ii) fixação de interpretação conforme a Constituição da LAC e do Decreto nº 11.129/2022, com vistas a garantir a presença da CGU como órgão proponente ou de controle nas tratativas envolvendo acordos de leniência no âmbito federal; (iii) reconhecimento da existência de um “estado de coisas inconstitucional”; e (iv) revisão e eventual repactuação dos acordos firmados em período anterior ao ACT.7
De acordo com os proponentes da ADPF, os acordos questionados teriam sido firmados em um contexto de extrema pressão institucional, em violação a direitos e garantias fundamentais, com destaque para o princípio da legalidade, a proporcionalidade, o devido processo legal, a livre iniciativa e a função social da empresa. A atuação do MPF, segundo a peça inicial, teria sido caracterizada por práticas coercitivas e pela imposição de valores desproporcionais, com efeitos danosos sobre a atividade econômica e a própria existência de algumas das empresas signatárias.
Diante da complexidade da matéria, o STF, por meio do relator da ação, Ministro André Mendonça, optou por abrir prazo para que as partes envolvidas – empresas e órgãos públicos – buscassem uma solução consensual. Na decisão, o relator destacou a existência de “espaço para tentativa de conciliação sobre a matéria em discussão”, diante das especificidades do caso concreto.8
Essa sinalização da Corte Suprema deu ensejo à expectativa, por parte de agentes privados, de revisão ampla dos acordos de leniência firmados anteriormente ao ACT. Entre os argumentos suscitados para justificar a repactuação destacam-se: (i) a morosidade das negociações, com a fixação de valores considerados irreais frente à situação econômica das empresas; (ii) a frustração de expectativas quanto ao acesso a crédito público e privado; (iii) a impossibilidade de cumprimento das obrigações pactuadas em razão do agravamento da crise econômica; (iv) mudanças no contexto político e institucional; e (v) um modelo de execução dos acordos considerado simplista, desprovido de mecanismos de flexibilização diante de contextos variados.9
Ao final de 2024, a AGU, atuando nos autos da ADPF, informou ao STF que havia sido alcançado consenso entre órgãos e empresas para celebração de termos aditivos a acordos de leniência previamente firmados com a União.10 As empresas que deverão formalizar esses aditivos são: UTC Participações S.A., Braskem S.A., OAS, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Nova Participações S.A. e Odebrecht.
De acordo com notas oficiais publicadas nos portais da CGU e da AGU, os termos aditivos considerarão dispositivos da Lei nº 13.988/2020, que trata da transação na cobrança de créditos da Fazenda Pública, e incluirão: a) isenção da multa moratória de 2% incidente sobre as parcelas vencidas; b) substituição da taxa Selic pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) como indexador até 31/05/2024, com retomada da Selic a partir desta data; c) possibilidade de utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL para abatimento da dívida, desde que se trate de débito de difícil recuperação; d) renegociação dos cronogramas de pagamento de acordo com a capacidade financeira das empresas; e) autorização para utilização de créditos fiscais para quitação de até 50% do saldo devedor atualizado. Importante frisar que não houve reclassificação de fatos.
A ADPF nº 1051 caminha agora para uma decisão quanto à homologação dos termos aditivos, não antes de ser ouvida a Procuradoria-Geral da República (PGR), que pediu prazo para se manifestar sobre a repactuação, especialmente no que toca à base de cálculo das correções dos valores a serem pagos.
Ainda que não se possa, neste momento, antever com precisão qual será o desfecho da matéria, é possível afirmar que o STF tem sinalizado preferência por uma atuação coordenada com os demais órgãos públicos e empresas envolvidas, prezando tanto pela manutenção da política pública de integridade quanto pela escuta das dificuldades concretas enfrentadas pelas empresas.
Por outro lado, não há, até o momento, indicativos de que o STF acolherá de forma ampla os pedidos constantes da petição inicial da ADPF, notadamente no que se refere à reanálise dos fatos ou à requalificação jurídica das condutas envolvidas. A Corte parece, assim, adotar uma linha de distinção entre a atuação institucionalizada e consensual dos acordos de leniência e os episódios de delações premiadas que vêm sendo objeto de revisões judiciais significativas.11
Conclui-se, com isso, que os instrumentos consensuais firmados com pessoas jurídicas pela CGU/AGU, mesmo os anteriores ao ACT, tendem a ser preservados, não sendo objeto do mesmo grau de contestação institucional enfrentado em outros contextos da Operação Lava Jato. O STF, ao que tudo indica, tem distinguido os efeitos de eventuais abusos cometidos em delações premiadas daquilo que se produziu dentro de arranjos consensualizados e com validação técnico-institucional.
Resta aguardar os desdobramentos da ADPF nº 1051 e demais decisões correlatas, que certamente influenciarão o arranjo institucional de responsabilização por atos lesivos à administração pública no Brasil e a própria operacionalização da Lei nº 12.846/2013.
- i BRASIL. Lei nº 12.846, de 10 de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Disponível em: L12846. Acesso em: fev. 2025. ↩︎
- ii BRASIL. Lei 8.429, de 2 de junho 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o §4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências. Disponível em: L8429. Acesso em: fev. 2025. ↩︎
- BRASIL. Decreto 11.129, de 11 de julho de 2022. Regulamenta a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Disponível em: D11129. Acesso em: fev. 2025. ↩︎
- iv BRASIL. ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Acordo de cooperação técnica em matéria de combate à corrupção no Brasil, especialmente em relação aos acordos de leniência da Lei 12.846 de 2013, de 06 de agosto de 2020. Disponível em: Scanned Document. Acesso em: fev. 2025. ↩︎
- Por ocasião da notícia de celebração do ACT, o STF anunciou a instituição futura do Centro de Mediação e Conciliação para os processos originários e recursais de sua competência, “com o objetivo de evitar a judicialização de casos que possam ser resolvidos amigavelmente ou a solução definitiva de processos já iniciados por meio do diálogo”. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro Dias Toffoli assina acordo de cooperação técnica para combate à corrupção. Disponível em: Supremo Tribunal Federal. Acesso em: abr. 2025. ↩︎
- BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo convoca audiência de conciliação em ação sobre acordos de leniência na Lava Jato. Disponível em: Supremo Tribunal Federal. Acesso em: fev. 2025. ↩︎
- BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 1051. Disponível em: Supremo Tribunal Federal. Acesso em: fev. 2025. ↩︎
- BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo convoca audiência de conciliação em ação sobre acordos de leniência na Lava Jato. Disponível em: Supremo Tribunal Federal. Acesso em: fev. 2025. ↩︎
- AULA, Juliana Bonacorsi de. ESTELLITA, Heloisa. Uma nova chance aos acordos de leniência da operação “lava-jato”. Consultor Jurídico, São Paulo, 28 de jun. de 2024. Disponível em: Uma nova chance aos acordos de leniência da operação ‘lava jato’. Acesso em: fev. 2025. ↩︎
- BRASIL. CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. AGU, CGU e empresas concluem renegociação e enviam ao STF proposta final sobre acordos de leniência. Disponível em: AGU, CGU e empresas concluem renegociação e enviam ao STF proposta final sobre acordos de leniência — Controladoria-Geral da União. Acesso em: abr. 2025. ↩︎
- BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF anula processos contra Antonio Palocci na Lava Jato. Disponível em: Supremo Tribunal Federal. Acesso em abr. 2025. ↩︎