2024 é apontado como um ano particularmente relevante no contexto global de escalação dos ânimos políticos potencialmente nocivos à democracia, tanto por ser o último do superciclo eleitoral latinoamericano, iniciado em 20211, quanto por ser um ano marcado por diversas eleições paradigmáticas, a exemplo das controversas votações organizadas em El Salvador e na Venezuela, da mudança paradigmática de curso nas eleições da África do Sul, das complexas disputas legislativas na Alemanha, na França e no Reino Unido, das maiores eleições da história, na Índia, e dentro em breve, das eleições estadunidenses de 5 de novembro.
Na América Latina, considerando-se as eleições municipais e judiciárias, 13 países organizaram ou estão organizando, atualmente, eleições. No dia 27 de outubro, por exemplo, o primeiro turno do pleito presidencial uruguaio se deu simultaneamente ao segundo turno das eleições municipais brasileiras e ao primeiro das municipais chilenas. Estima-se que os países realizando eleições neste ano reúnam cerca de 60% da riqueza global e 54% da população mundial, o que nutre o interesse não somente pelos resultados políticos dos pleitos, mas também pelas regras aplicáveis à propaganda, ao financiamento e ao comportamento em geral de pessoas candidatas e eleitoras ao redor do globo.
No caso do Brasil, a realização de eleições municipais suscitou e segue suscitando debates relacionados à transparência e ao cumprimento das normas que regulam o financiamento e os gastos de candidatos, partidos e federações. Parte expressiva dos recursos advém do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, conhecido popularmente como Fundo Eleitoral, que corresponderam, neste ano, à destinação de R$ 819 milhões2 e R$ 4.9 bilhões3, respectivamente, para os partidos políticos.
De outra sorte, a alta representação no Congresso Nacional4 dos partidos que mais elegeram prefeituras5 aponta também para a influência da chamada “máquina pública”, por meio da participação de mandatários nas campanhas locais ou até mesmo a destinação de recursos para realização de projetos por meio de emendas parlamentares cujo grau de transparência varia. Outro indício apontado como sintomático da perpetuação da influência destes grupos sobre o controle do orçamento e das pautas políticas, que igualmente permearam as campanhas, foi a taxa de reeleição mais alta da história do Brasil6.
Na oitava Cúpula das Américas, realizada em Lima no ano 2018 com presença dos chefes dos Estados-membros da OEA, foram adotados 56 compromissos voltados para o aprimoramento da governabilidade democrática e o combate à corrupção na região em várias frentes de abordagem. No que diz respeito especificamente à transparência nas eleições, comprometeram-se a adotar e/ou reforçar medidas que promovem “a transparência, a responsabilização, contabilidade e bancarização das receitas e despesas de organizações e partidos políticos, principalmente de suas campanhas eleitorais, garantindo a origem lícita das contribuições, bem como a punição pelo recebimento de contribuições ilícitas”7.
Este compromisso foi monitorado pelo projeto “Observatorio Ciudadano de Corrupción” (OCC), criado por um consórcio de organizações da sociedade civil de diversos países latinoamericanos para monitorar o cumprimento dos compromissos assumidos na VIII Cúpula, no relatório publicado a partir deste esforço de monitoramento em 2021. O relatório procura desmembrar o avanço em cada um dos compromissos analisados em uma vertente normativa e outra prática – isto é, no caso da transparência nos partidos e nas campanhas eleitorais, compreender se houve a criação ou alteração do marco jurídico e regulatório aplicável, a qualidade das eventuais mudanças, e a percepção da sua eficácia, pertinência e sustentabilidade.
A metodologia empregada pelo Observatorio Ciudadano de Corrupción na análise dos avanços nos Compromissos de Lima envolve indicadores de norma e prática, focando na comparação entre marcos normativos e sua implementação prática. O estudo considera o progresso a partir de critérios de sustentabilidade, eficácia e pertinência. Os indicadores normativos avaliam a legislação vigente em relação aos compromissos da Cúpula de Lima, com uma análise da Constituição, normas e jurisprudência de cada país, através de 74 perguntas sobre cada compromisso. Já os indicadores de prática avaliam ações concretas dos governos para cumprir os compromissos anticorrupção, com base em entrevistas, relatórios e outras fontes de verificação, por meio de 64 perguntas sobre o avanço prático dos compromissos prioritários.
De acordo com o Relatório do OCC8, 87% das questões sobre a existência de leis que garantam transparência, responsabilização, prestação de contas e sanções para o financiamento irregular de campanhas políticas, obtiveram resposta positiva, sinalizando avanços no cumprimento dos compromissos respectivos. No entanto, no que diz respeito à implementação de ferramentas, planos e programas para cumprir o compromisso, a resposta positiva caiu para 52%. No caso brasileiro, a baixa percepção concreta de melhora reflete também os resultados do Brasil no Índice de Percepção da Corrupção, que em 2023 baixou para 36 pontos, ficando na em 104ª classificação da edição mais recente da pesquisa, abaixo da média regional de 43 pontos9.
A piora no desempenho do Brasil no Índice de Percepção da Corrupção 2023 condiz com a postura menos firme adotada na IX Cúpula das Américas, em 2022, quando os compromissos adotados respectivamente à transparência e à integridade nos processos eleitorais apresentaram avanços tímidos, em contraste com a Cúpula anterior. Reflete também a profunda erosão do ecossistema de combate à corrupção no Estado brasileiro, que perpassou a substituição de autoridades nos órgãos de controle, ameaças à autonomia do Poder Judiciário, e ao longo do último governo, o aprofundamento do controle orçamentário, para além das pautas de votação, por parte do Poder Legislativo, a partir da variedade de emendas parlamentares à lei orçamentária, prática que tem o condão de desequilibrar sensivelmente a correlação entre os Poderes da República, e que, uma vez instituída, pende até o momento da devida regulamentação, tendo tornado-se mecanismos notórios pela baixa transparência que possuem.
Mesmo assim, por ocasião da IX Cúpula das Américas, registrou-se expressamente um compromisso dos líderes de Estado com a implementação de “medidas que protejam e fortaleçam a integridade do processo eleitoral e promovam a responsabilização perante os cidadãos, a transparência e a imparcialidade nas instituições eleitorais nacionais e nos mecanismos de controle, bem como a transparência no financiamento dos partidos políticos, das campanhas eleitorais e das candidaturas a cargos públicos”10.
Enquanto a cúpula de 2018 pareceu se concentrar sobre a necessidade de erradicar a impunidade nos casos de corrupção que envolvem os processos eleitorais, o compromisso firmado em 2022 revela uma mudança de foco, contemplando os interesses daqueles que questionam a transparência e a imparcialidade das instituições encarregadas da realização das eleições e dos mecanismos de controle, tornando a transparência no financiamento aos partidos e campanhas um objetivo quase secundário. O Brasil, particularmente, tornou-se palco de enfrentamento entre alguns setores da política e a autoridade eleitoral, em um contexto regional crescente de contestação formal e irresignação de apoiadores com resultados eleitorais que, em situações extremas, produz episódios como a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, ou o atentado aos edifícios do Congresso Nacional, do STF e do Palácio do Planalto, em 8 de janeiro de 2023. Assim posto, a IX Cúpula parece refletir a instabilidade política e a polarização tóxica que contaminou o ambiente institucional a ponto de passar a envolver atores do Poder Judiciário e dos órgãos eleitorais independentes – não realizando-se, aqui, nenhum juízo sobre a eventual participação de indivíduos que compõem essas instituições em atos irregulares, o que, por outro lado, não justifica desconstituir a institucionalidade democrática nos Estados em nome de desconfianças pessoais.
Nesse contexto, o avanço dos mecanismos de controle e de transparência parece ter passado discretamente ao segundo plano do debate, abrindo espaço para a proposição de alterações que, em vez de debruçar-se sobre o aprimoramento e a ampliação da capacidade dos mecanismos de transparência e combate à corrupção aplicáveis, contemplam anistias aos partidos que não cumpriram com a legislação referente à distribuição de recursos de campanha por gênero e raça11 – amplificando a sensação de impunidade –, ou, mais recentemente, a limitação das prerrogativas do TSE12 na organização das eleições. Via de consequência, as eleições municipais de 2024 se deram em condições ainda mais precárias de transparência que as anteriores, no que se refere à ainda insuficiente regulamentação sobre os gastos de campanha com publicidade digital e impulsionamento de conteúdo – que ficou relegada à disposição minguante das plataformas de promover voluntariamente a transparência dos dados sobre os serviços prestados aos partidos e às campanhas –, à destinação de emendas orçamentárias sem a devida transparência no ano eleitoral, e ao controle do abuso do poder político e econômico, dentro e fora da internet.
Reconhecendo-se as qualidades múltiplas do regime eleitoral brasileiro, que de fato abundam sobretudo no que diz respeito à transparência nos resultados eleitorais e na condução do pleito, por parte do TSE – o que foi atestado por todas as entidades que realizaram observação eleitoral em 2022 e em 2024 –, as preocupações enumeradas no último parágrafo são tão atuais quanto urgentes, e revelam, para além da necessidade de agir topicamente, uma demanda por atenção à continuidade do ciclo eleitoral, em oposição ao senso comum de intermitência do exercício do voto. É dizer, terminada a eleição, uma enormidade de outros temas será encaminhada como desdobramento de um pleito, ou como etapa preparatória para o próximo, e é por isso que não se pode perder de vista a atuação dos partidos e dos mandatários em exercício, seja pelo prisma da regularidade das suas atuações ao destinar recursos e praticar atos de gestão, seja ainda para não permitir que legislem em benefício próprio incontestadamente.
Neste sentido, é fundamental que as entidades e atores comprometidos com valores genuinamente democráticos e republicanos se organizem imediatamente em torno de propostas que abordem de maneira pragmática, mas sobremaneira crítica, as agendas prioritárias, para refletir na sociedade e nas autoridades simultaneamente este senso de urgência – tais como: (i) o estabelecimento de obrigações claras e responsabilidades objetivas para as plataformas digitais no que se refere ao impulsionamento e à moderação de conteúdo político-eleitoral e à imparcialidade dos códigos de distribuição de conteúdo e de propaganda, (ii) o rigor na aplicação das regras relacionadas ao financiamento e ao conteúdo das campanhas partidárias (inclusive durante as “pré-campanhas”, ainda carentes regulamentação mais robusta), e, principalmente, (iii) a contraposição à impunidade que vem sendo promovida e utilizada como moeda de barganhas políticas, como nos casos do descumprimento das cotas de financiamento de campanhas eleitorais e dos delitos cometidos nos ataques de 8 de janeiro de 2023.
De todo o contexto descrito, para o ciclo eleitoral que se encerra em 2024 e para aquele que se inicia a partir de 2025, uma perspectiva parece ser comum ao longo das Américas: ainda que as autoridades eleitorais falhem ou sejam alvo de ataques, e mesmo que os Poderes Executivo e Legislativo não cumpram com suas partes nos compromissos assumidos nas Cúpulas da OEA, iniciativas como o Observatorio Ciudadano de Corrupción demonstram que as organizações da sociedade civil estão articuladas e estarão lá cumprindo com o seu compromisso de monitorar e contribuir, sempre e tanto quanto possível, para o avanço dos modelos de transparência e integridade eleitorais.