O dia 25 de julho é um convite para que a sociedade brasileira não esqueça da força política que é a existência das mulheres negras nesse território diaspórico permeado de heranças vivas de colonialismo que é o Brasil. Quando uma mulher negra ocupa qualquer espaço – do interior de uma residência a um cargo de poder na Esplanada dos Ministérios – há ali uma força política, coletiva e insistente. A presença de um corpo feminino negro em um lugar, é, por si só, expressão de rupturas e de uma “milenar resistência”1.
A data foi instituída no Brasil por meio da Lei Federal n.º 12.987/2014, que definiu o dia 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e o Dia Nacional da Mulher Negra. Um dia-convite para reverenciar aquelas que vieram antes, aquelas que teceram princípios de direitos sociais e que são referências de articuladas e revolucionárias práticas políticas. Uma data-convite para reforçar as práticas antirracistas, tanto nas interrelações, quanto nos campos profissionais e coletivos.
Pretendíamos que fosse, também, uma data comemorativa. Contudo, o Brasil, que foi solo da brava luta de Tereza de Benguela e de Dandara dos Palmares, hoje é o país onde mulheres negras representaram 66% do total de mulheres assassinadas, com a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação à taxa de 2,5 para mulheres não negras. Em 2015, Elza Soares lançava a música Maria da Vila Matilde como um canto de encorajamento à denunciação de violência doméstica contra mulheres, canção que ainda é necessária em um país onde 62% dos feminicídios registrados em 2021 foram contra mulheres negras.
A violência contra mulheres negras se manifesta também de outras formas. Se, no século passado, Maria Carolina de Jesus já escrevia que “o maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”2 , hoje ainda estamos presas numa realidade em que 22% dos lares encabeçados por mulheres negras estão em situação de insegurança alimentar grave.
Na década de 80, Sueli Carneiro3 já denunciava que as desigualdades educacionais de mulheres negras se refletiam na estrutura organizacional e nos salários mensais de cada uma, pois que menos de 1% das mulheres negras brasileiras possuía ensino superior. Ainda hoje, embora as mulheres negras representem 26,3% das pessoas que estão nas faculdades e universidades, permanece necessário questionar a ausência de incentivo à permanência delas no ensino superior e as múltiplas facetas dos racismos nos meios acadêmicos. Em 2023, Bia Ferreira ainda precisa lembrar que cota não é esmola.
Todos esses dados evidenciam o que Neuza Santos diz no sentido de que “saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas, mas é, também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar a sua história e recriar-se em suas potencialidades”.
Para enfatizar mais ainda esse recorte da autora, o dia 25 de julho é um dia para também lembrar que, em um país onde a mulheres negras são a maioria, representando 28% da população, elas ainda são sub-representadas na política. Exemplo disso é que, no âmbito legislativo, em 2022, foram eleitas 29 deputadas autodeclaradas negras para Câmara dos Deputados, do total de 513 parlamentares; e 74 para assembleias estaduais, do total de 1.059 eleitos. Na verdade, foi apenas em 1934 que o Brasil elegeu sua primeira deputada negra, a catarinense Antonieta de Barros, que foi uma das três primeiras mulheres eleitas para cargos políticos no país. Como deputada, Barros focou a sua atuação política na defesa de políticas públicas da educação de professoras, sendo a autora do projeto de lei que definiu o Dia do Professor.
Os dados históricos aqui evidenciados sobre desigualdade, violências e sub-representação ainda não foram capazes de revolucionar as políticas públicas, na direção de políticas eficazes para as mulheres negras brasileiras. Elas são as mais impactadas pela ausência de direitos básicos e pelas malezas sociais, econômicas e políticas.
É imprescindível recordar que as mulheres negras mães, lgbtqia+, com deficiência, imigrantes, amazônidas, nordestinas, das beiras de rios aos centros urbanos, das favelas às universidades, da agricultura familiar às indústrias, dos quilombos aos terreiros, dos trabalhos informais à política, dos cargos públicos ao trabalho doméstico, do norte ao sul do país, são sujeitas de direitos, são intelectuais, ancestrais e revolucionárias, que tecem poemas e costuram canções enquanto teimosamente continuam vivas e constroem um novo jeito de ser mulher negra nesse território, com direito também ao lazer e ao prazer.
A Transparência Internacional – Brasil saúda todas as mulheres negras brasileiras que foram e são partes essenciais da construção de políticas públicas deste país e, enquanto organização, luta pela “construção de uma sociedade em que o dado raça seja irrelevante do ponto de vista de condicionar as oportunidades vitais das pessoas”, da forma como ensina a escritora paraense Zelia Amador de Deus.
1 – Termo utilizado por Conceição Evaristo no poema “Olhos d’água”. Editora Pallas, 2015
2 – Trecho extraído do livro Quarto de despejo
3 – Escritos de uma vida (Editora Letramento, 2018).
4 – CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro. São Paulo. 2011.
5 – A pequena corrupção se refere ao abuso cotidiano cometido por servidores públicos locais de baixo e médio escalão em suas interações com pessoas comuns. Neste caso, muito frequentemente esses cidadãos tentam acessar bens e serviços públicos como hospitais, escolas, delegacias de polícia e outras agências, mas só o conseguem mediante pagamento de determinada quantia a um funcionário público.
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Pesquisadora da Transparência Internacional - Brasil
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