Como é de conhecimento das leitoras e dos leitores do Blog, a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) é um dos principais marcos legais do sistema de integridade brasileiro. Uma das principais contribuições da lei foi introduzir a possibilidade de soluções negociadas para os casos de corrupção – isto é, a possibilidade de que as autoridades não apenas apliquem as sanções cabíveis, mas negociem com as partes em troca de colaboração para a elucidação dos fatos e para a remediação dos danos.
O uso dessas soluções negociadas no combate à corrupção traz tanto oportunidades quanto riscos, como apontado diversas vezes pela OCDE. Assim, ao longo dos mais de dez anos desde a aprovação desses mecanismos, a sua implementação tem exigido aperfeiçoamentos, aprendizados e inovações institucionais. Uma dessas inovações foi a introdução, em 2022, dos chamados “julgamentos antecipados”, uma forma de resolução distinta do famoso acordo de leniência.
Para entender melhor esse instituto e como ele tem sido aplicado, o Grupo de Trabalho “Lei Anticorrupção e Acordos de Leniência” da Rede Brasileira de Estudos e Práticas Anticorrupção conversou com o secretário de integridade privada da Controladoria-Geral da União, Marcelo Pontes Vianna. A entrevista foi conduzida por escrito por Pedro Vasques Soares e pode ser conferida a seguir.
O que é o P.A.R? O que é o julgamento antecipado em PAR?
Marcelo Vianna: O Processo Administrativo de Responsabilização – PAR é o rito processual previsto na Lei n° 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) para apurar atos lesivos. Em outras palavras, o PAR é um procedimento que tem como objetivo apurar a responsabilidade de pessoas jurídicas pela prática dos ilícitos previstos na Lei Anticorrupção, garantindo o contraditório e a ampla defesa aos acusados.
O julgamento antecipado é uma forma consensual de se encerrar antecipadamente um PAR. Foi regulamentado pela Portaria Normativa CGU n° 19/2022.
Resumidamente, o julgamento antecipado é realizado quando uma pessoa jurídica acusada admite, voluntariamente, sua responsabilidade objetiva pela prática de um ato lesivo e assume os compromissos de ressarcir danos causados, perder eventuais proveitos obtidos com a prática do ilícito, pagar eventual multa cabível como sanção e colaborar com o esclarecimento dos fatos.
Em contrapartida, a pessoa jurídica acusada fica isenta da sanção de publicação extraordinária e garante a redução da multa cabível pela aplicação das atenuantes de colaboração, ressarcimento e admissão voluntária do ilícito.
Como se diagnosticou e qual a necessidade ou demanda percebida a justificar o desenvolvimento do novo instituto – Julgamento Antecipado em PAR?
MV: Com a reiterada aplicação da Lei n° 12.846/2013 percebeu-se que, em diversas situações, pessoas jurídicas acusadas possuíam interesse de assumir sua responsabilidade e cumprir as sanções cabíveis para encerrar de forma célere as investigações, que, por sua natureza, causam ônus aos acusados.
No entanto, o instrumento de solução consensual previsto na Lei (o acordo de leniência) possui requisitos que impedem sua utilização em todos os casos, tais como a apresentação de informações novas sobre os ilícitos investigados para a colaboração com a Administração. Nesse sentido, é usual que, ao se instaurar um PAR, a Administração já possua todas as informações e evidências relativas à prática de determinado ilícito, o que acaba por impedir a utilização do acordo de leniência.
Importante observar, no entanto, que o instituto não contempla apenas a pretensão de pessoas jurídicas acusadas, que têm o interesse na célere conclusão das apurações e na garantia de utilização de uma dosimetria favorável das sanções a serem aplicadas.
O julgamento antecipado atende também aos interesses da Administração que, além de celeridade e colaboração, busca redução da judicialização em face das sanções aplicadas, o efetivo pagamento de multas, e o ressarcimento de danos. Para além da celeridade processual, o julgamento antecipado contribui para incentivar a integridade no setor privado, uma vez que a empresa reconhece o ilícito que praticou e poderá adotar as medidas necessárias para corrigir seus procedimentos internos e, assim, evitar a ocorrência de situações similares no futuro.
Exatamente pela possibilidade de conjugação desses interesses, num cenário de inexistência de mecanismo de solução consensual cabível, decidiu-se pela regulamentação do julgamento antecipado.
Quais características centrais nortearam a criação do instituto? Houve preocupação com o sombreamento do instituto recém-criado com os Acordos de Leniência?
MV: Como anteriormente mencionado, o Julgamento Antecipado foi instituído para ser aplicado nos casos em que não seria possível a celebração de um acordo de leniência, mas, ainda assim, pudesse haver interesse de acusados de adoção de solução consensual. Dessa forma, entende-se que foi evitado o sombreamento dos institutos.
Também vale mencionar que, na instituição do julgamento antecipado, buscou-se regulamentar a concessão de benefícios já previstos em Lei, tais como a atenuação de multa e a isenção de aplicação da sanção de publicação extraordinária, em contrapartida para condutas desejáveis dos acusados também já previstas em Lei como atenuantes, tais como a colaboração no âmbito do PAR, o ressarcimento de danos e a admissão voluntária da responsabilidade. Dessa forma, foi possível regulamentar o instituto sem necessidade de modificação da legislação.
Qual o fluxo procedimental para o uso do instituto do julgamento Antecipado e em que se diferencia, na perspectiva procedimental, com o fluxo de negociação e celebração dos Acordos de Leniência?
MV: Pode-se afirmar que o julgamento antecipado, além de possuir menos requisitos, tem um fluxo de procedimentos bastante simplificado em relação ao acordo de leniência.
O julgamento antecipado não exige uma avaliação das informações apresentadas pelo acusado a título de colaboração quanto à efetividade para o esclarecimento do ilícito, dispensando o ineditismo destas informações. Também apresenta critérios objetivos quanto aos benefícios a serem concedidos aos acusados.
Ao requerer menor análise da Administração tanto na verificação do cumprimento de requisitos, quanto na determinação dos benefícios cabíveis, acaba por resumir eventual negociação à aceitação ou não pela Administração de proposta de acusado a partir de parâmetros objetivos.
O julgamento antecipado também se diferencia da leniência ao não exigir um posterior acompanhamento de implementação de medidas de integridade pelo acusado. Dessa forma, é também mais simplificado em seu cumprimento, que independe de acompanhamento alongado no tempo, se encerrando com o cumprimento das sanções aplicadas.
Encerrado o ano de 2023 e o primeiro semestre de 2024, quais os resultados até então quanto ao uso do julgamento Antecipado? Quais os resultados quanto ao uso da ferramenta Acordo de Leniência? Enxerga-se correlação?
MV: Considerando o ano de 2023 e o primeiro semestre de 2024, foram celebrados 3 acordos de leniência que resultaram em 180 milhões de reais acordados para pagamento. No mesmo período, foram deferidos 32 pedidos de julgamentos antecipados que resultaram na aplicação de 41 milhões de reais em sanções.
Os números indicam que os julgamentos antecipados têm uma maior amplitude em sua aplicação, enquanto os acordos de leniência têm sua utilização mais adequada a casos de maior complexidade, que tendem a envolver maior montante de recursos.
Qual a leitura da CGU sobre o uso do instituto do julgamento antecipado no ambiente empresarial brasileiro? Quais os benefícios esperados para Estado, Empresas e Sociedade?
MV: O julgamento antecipado aprimora a apuração dos atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção, trazendo benefícios não só à Administração, mas também a empresas e sociedade.
Destaco que o instituto reforça a segurança jurídica nas apurações, permite celeridade para as soluções consensuadas e, de forma geral, incrementa a transparência da política pública de promoção da integridade privada, trazendo ainda mais clareza quanto as condutas esperadas das pessoas jurídicas nas relações público privadas.
Com o julgamento antecipado as pessoas jurídicas têm previsibilidade das sanções a serem aplicadas em decorrência de atos lesivos quando se dispõem a assumir sua responsabilidade objetiva e colaborar com a Administração. A Administração, por sua vez, passa a ter certeza do cumprimento das sanções e, portanto, da efetividade na aplicação da Lei.
Ao longo dos últimos anos, a Lei Anticorrupção se consolidou como uma ferramenta relevante para agilizar a resolução de processos e fortalecer a integridade no ambiente corporativo brasileiro.
Esta entrevista com o Secretário de Integridade Privada da CGU, Marcelo Pontes Vianna, destaca os avanços alcançados nos últimos anos, mas também abre espaço para reflexões críticas sobre a aplicação e o futuro da legislação no país.
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